Olho para o minúsculo conta rotações digital, mas não consigo ver os dígitos marcados a negro no LCD. A janela é mínima. Através de outra janela, a do meu capacete, já vi o Castelo do Queijo que vibra agora no meu espelho. Subo a Avenida da Boavista, já passei o Bela Cruz à minha esquerda. Estou no renascido Circuito no Porto onde correu a elite da Fórmula 1 dos anos 50. Vou em bom ritmo e, no entanto, não corro para a Pole Position. Passo a caixa reclamando da dureza da embraiagem, exige demasiada força na manete. Mas pelo menos é precisa. A recta é curta para um BRM, longa para uma Vespa. A T5 é a Vespa ideal para, aqui, iludir a ideia de infinito.
Está algum frio mas prefiro manter a viseira do capacete levantada. Lá ao fundo vou reduzir para terceira para entrar na Avenida do Parque. Se calhar segunda para sair em força. Travo em antecipação, não estou à vontade com as maxilas novas, e escolho a segunda. Saio com decisão, mas alerta, em vez de rails temos obras em volta. Abordo a parte mais técnica do circuito com cuidado, há algumas zonas húmidas na pista, para além de trânsito, embora pouco. Terceira na direita, apanhei o sinal verde, noventa graus à esquerda para a Vilarinha. Segunda, respira bem, terceira. Desenvolve sem poço, alegre, mas prefere a banda de regime mais alta. Não há espectadores nos telhados e varandas, estranho ver a pista assim, despida de rails. Encosto antes de entrar na Circunvalação, enquanto aprecio de relance as novas moradias que nascem debruçadas sobre a estrada.
Deixo a T5 em cima do descanso, mas sem descansar o motor. Quero-o a trabalhar. Vibra, mas não soluça. Sem rodar o acelerador é expelido pelo escape um fumo branco que o vento vai devolvendo, esbranquiçando o vermelho vivo da pintura imaculada. Rodo a chave para a esquerda e faz-se silêncio. Aprecio então o belo restauro de que este exemplar do Rui Tavares foi recentemente objecto. Devolver a T5 rosso corsa à sua estrita condição original foi a preocupação que norteou o trabalho feito por mãos calejadas de sabedoria. O resto é rigor e obstinação do seu proprietário. Pormenores como a cor da zincagem de algumas peças metálicas, muitas delas interiores, foram apenas o mais visível dos quebra-cabeças da reconstrução, o que faz desta unidade - dos 30.060 exemplares construídos a partir de 1985 – uma das raras em condição muito próxima da de saída da fábrica.
Olhando para ela, de qualquer ângulo, a sensação é sempre a mesma: a T5 é uma máquina de extremos. Apesar de a sua base ser a PX, toda a sua linha “nova” é desajeitada, traços angulosos e rudes, exactamente o oposto do que é suposto ser uma Vespa, desenhada a compasso. Os pormenores mais evidentes são o farol rectangular no topo do qual surge um pequeno ecrã transparente. Um deflector negro na zona baixa do avental remata o toque desportivo anos oitenta, que só fica completo com os tampões de rodas, detalhe que bem podia ser inspirado no contemporâneo Super Cinco.
Esteticamente talvez seja uma das menos interessantes Vespa de sempre. Só ultrapassada pela Cosa no fundo da tabela. Mas prima pela diferença. A verdade é que a muitos entusiastas agrada exactamente por ser uma máquina que deixa marca.
No capítulo técnico estamos no outro extremo. Este propulsor talvez seja o mais evoluído dois tempos saído de Pontedera, elevando a potência dos 8 até aos 11cv às 6700rpm e permitindo uma velocidade de ponta que atinge os três dígitos. A ficha técnica fixa-se nos 108kms/h. Uma verdadeira GS dos anos oitenta! Cinco transferes ajudam o motor a processar a admissão da mistura ar-gasolina, característica de onde deriva a designação comercial T5.
A outra designação é a de Pole Position (!) e advém-lhe de um curioso golpe publicitário da Piaggio que oferecia uma T5 ao pole man na qualificação de cada Grande Prémio de Fórmula 1. Nesse ano só o tri-campeão brasileiro Nelson Piquet coleccionou nove ! Na verdade, só mais um facto bizarro a juntar ao histórico de uma Vespa desalinhada.
3 comentários:
Há efectivamente algo melhor que ter o nosso gosto satisfeito. É o poder partilhar com os amigos.
Nesse dia eu estava atrás de ti, ao ler isto senti-me contigo na Vespa.
Obrigado Vasco.
O texto está formidável!!
Não podias ter escolhido um melhor palco para rolar com essa máquina. Eu não sou do tempo desse circuito da Boavista e pouco conheço dele mas com este relato foi como se revivesse esses tempos. Ainda para mais aos comandos da T5!
Obrigado por nos continuares a contemplar com estes mimos fotográficos e narrativos ;)
Abraço
Júlio
Rui:
Sabes que sempre achei a tua colecção de scooters muito criteriosa. E gosto de escrever sobre ela. Agora falta a Lambretta :)
Júlio:
O Circuito da Boavista tem de facto esse ambiente anacrónico. A propósito de Piquet, lembrei-me do que ele dizia sobre a sensação que tinha quando pilotava um Fórmula 1 em Monte Carlo: era como se estivesse a andar de bicicleta na sala de estar (!). De T5 a fundo na Boavista é ao contrário. A sala de estar é a mesma mas a bicicleta é um brinquedo à escala :).
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