quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Linha Tua (IV)



(continuação)


Cheguei à Estação. Ainda é cedo, mas o sol já está desconfortável, queima-me a pele. As sombras são escassas mas pouco concorridas. Na verdade, o meu campo visual está quase vazio de gente. Ao fundo, dois homens desmontam andaimes de um palco que lentamente vai deixando de o ser. Ao longo do ramal da linha desactivado, ouve-se o tilintar de garrafas vazias ao encontro de outras. São dois outros homens que vão enchendo grandes sacos verdes do vidro gasto, sinal do enterro da festa da véspera em Foz Tua Estação. 

O espaço em volta é amplo. Abro a mala e fico indeciso na escolha dos acessórios para acoplar ao corpo da Nikon. É a habitual dificuldade em focar-me rapidamente quando chego a um território novo pleno de interesse. Como escolher o que captar primeiro ? Um detalhe ou um plano largo ? Decido carregar o cinto com o material que antecipo vir a precisar, para evitar voltar frequentemente à scooter.

O que vejo é um cenário a duas velocidades, tal como no Pocinho. Mas aqui, em Foz Tua, não estão separados por trezentos metros de linha. Estão arrumados num espaço físico mais concentrado.

Por um lado a estação central, que antevejo ser o íman em torno do qual se gravita.






Cuidada, preservada na madeira, no azulejo, na pedra. Sem guarda aparente e com um pequeno mas digno museu aberto, com peças do mundo ferroviário, onde me refugiei aproveitando a sombra fresca. Reparem no pormenor da inscrição na moldura de pedra da porta principal: Grande Velocidade.









Em volta deste prenúncio do TGV duriense, vejo o outro lado. Aquele em que o cuidado dá lugar ao desleixo, em que o primor cede perante o abandono. Este património ferroviário merecia mais. Memória e respeito.







Estas são composições cuja dignidade é há muito ignorada. Esventradas pelo catálogo das dilinquências, não respondem à pergunta mais simples: como é possível ter-se chegado aqui ?


































O estado de conservação desta locomotiva a vapor, que esteve ao serviço na Linha,  dispensa qualquer legenda. Neste primeiro plano assemelha-se a um navio naufragado.























O abandono destes pedaços de história à sorte, à inclemência da erosão do tempo e, sobretudo, à acção do vandalismo mentecapto, ultrapassa os limites da negligência. Todo este material circulante agoniza hoje na Estação de Foz Tua, sem que uma luz se vislumbre no final do verdadeiro túnel negro que é o futuro da ferrovia portuguesa. Muito mais do que das palavras, é das imagens que me sirvo para contar a história.








































Saí da Estação de Foz Tua com uma sensação paradoxal. Vi o que tinha para ver. Triste fado o dos caminhos de ferro. Só vestindo a pele do fotógrafo, mais frio e protegido pela câmera documentalista, me senti confortável. 




À direita da Helix o quilómetro um dos mais de cento e trinta da Linha do Tua. Vou fazer os primeiros a pé...









segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Linha Tua (III)




(continuação)

Enquanto o Pocinho ficava para trás, descobri que não conseguiria ladear o Douro tão perto da linha como previra inicialmente. Duas tentativas infrutíferas desapontaram-me. E ainda bem. Porque a estrada alternativa, mais longe do rio, é um tributo aos relevos do Alto Douro Vinhateiro, tão apertada entre muros como os socalcos que moldam a encosta. As curvas lentas incitam-me a desviar as pontas dos pés para fora do estrado, raspando ligeiramente as botas para me divertir ainda mais. A quarenta quilómetros por hora. Declaro, portanto, como falso que a condução empenhada seja interdita a esta velocidade.

No planalto, volto ao mapa. Surpreendido, descubro que quase nem me movi. Os ponteiros do relógio contam-me uma versão diferente da história. Atravesso aldeias. Santo Amaro, Mós. Cumprimento todos aqueles por quem passo. Aceno com a cabeça ou levanto o braço. Todos eles me retribuem, dirigindo-me um olhar acolhedor quando lhes entro pela aldeia, sem bater à porta.



Estou na N324. Não registei imagens aqui. Ao longe vi um castelo, Freixo de Numão, bem alto. Devia lá ir, mas não posso iludir-me, é imperioso fazer opções e apenas conto com um fim de semana disponível no bolso. Vou virar à direita, para Sebadelhe, entrando na N222.

São João da Pesqueira é a porta que escolho para voltar a entrar no Douro. Cachão da Valeira, talvez o mais tortuoso e caprichoso pedaço do rio, encravado pelas escarpas tão abruptas, só domado pela barragem. Passei aqui no Lés a Lés de 2009, ao levantar do dia, vindo de Boticas. Agora passo no sentido contrário, e com a linha do sol cada vez mais alta nos topos das encostas.

Depois de parar para ouvir o silêncio, e o eco do vê cavado pela natureza, vejo um comboio na linha. Aproxima-se no sentido Porto-Pocinho. Sigo-o com o olhar até entrar no túnel da barragem. Sento-me na Helix, arranco e vejo um cruzamento à esquerda com uma placa que anuncia: Alegria - Estação. Lembro-me deste cruzamento. E de não ter tido tempo, em 2009, para espreitar. Levanto a luva para ver o relógio, subo o pescoço para olhar a luz e convenço-me que será a última oportunidade do dia para obrigar a Nikon a trabalhar.

Desço devagar, o caminho é mesmo isso, tem pouco de estrada. À direita detenho-me para ver um esplêndido laranjal, num socalco improvável, quase ao nível do rio, talvez uma dúzia de árvores de fruto cuidadas. Resisto à tentação de provar uma. Prossigo até ao apeadeiro e encosto a Helix quase paralela à linha. 




É difícil imaginar que este apeadeiro sirva ou tenha servido população. Está pintado, tem horários afixados. Mas não tem janelas. Na verdade, tem-nas. Mas não são de vidro, estão desenhadas a tinta no seu lugar para nos dar a ilusão visual da sua existência. Em volta, apenas se vislubram três casas em pedra, duas delas em completa ruína. A terceira, imagino que talvez seja de quem tão bem cuida do laranjal.     









São nove e meia quando arrumo a máquina. Estou sozinho na estrada, talvez ninguém se lembre deste lugar. Há mais de meia hora que não me cruzo com ninguém. A noite vai cobrindo o espaço, as estrelas ganham a luz que nos falta aqui. Abrando para me despedir do laranjal, e abro o acelerador para vencer a subida íngreme.

Não vou a Carrazeda de Ansiães, porque encontro uma placa que me aponta as rodas na direcção de Alijó, onde irei dormir. Enquanto conduzo os últimos quilómetros do dia, recapitulo o seu filme. Em cheio. Já perdi o casaco, o cartão multibanco, mas não tenho frio e há outro cartão na carteira. Posso, portanto, pagar o jantar e a pousada. 

*** 

O sono retemperou-me as forças e o Domingo começa cedo. Salto o pequeno almoço, que tomarei mais à frente, pois o horário da pousada é incompatível com o meu plano.







Impressionou-me a robusta dimensão e equipamentos de Alijó. A revisitar em breve. Por agora estou na N212, descobrindo as mesmas curvas que fizera como as últimas no dia anterior à noite, com o cansaço de quinhentos quilómetros e dezasseis horas de viagem. Levanto a viseira para sentir o fresco da manhã.







Estou a chegar, por fim, ao Tua. Sou recebido pelo comboio, que me dá as boas vindas em cima da ponte metálica que testemunha o encontro do Tua com o Douro.


   

Desço à ponte rodoviária sobre o Tua, para dali observar a monumental primeira ponte ferroviária da Linha: o Viaduto das Presas e o subsequente Túnel das Presas. Este conjunto carimba o bilhete de acesso aos silêncios do Vale do Tua e à sua magia. A esta notável obra de engenharia ameaçada pela barragem voltarei noutro post.








De novo na Helix e de volta à estrada, embora por pouco tempo. Opto por começar pela Estação de Foz Tua. Descubro, de caminho, um acesso a um apeadeiro vizinho, na Linha do Douro: S. Mamede de Tua. Na descida, mais património vitivinícola abandonado, e mais um nome que reconheço desde sempre. 








O tempo voa. Assalta-me a sensação da sua falta, mais um dia encaixado na agenda e o ritmo seria outro. Inverto a marcha e deixo para trás S. Mamede. Vou, finalmente, mergulhar na Estação de Foz Tua.