quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Enredo



Bela cena de época e do quotidiano inspirada na escola realista. Reparem no caminhar triunfal do homem da mala, enquadrado pelo vértice de Lambrettas em direcção ao exterior da imagem. Quase como se quisesse ser ele não apenas o protagonista, como também o próprio espectador da tela. É o único em verdadeira acção e movimento. Todas as personagens - e são muitas - sorriem e parecem observá-lo, ainda que alguns indirectamente, ou com menos atenção.


A primeira pergunta que fiz quando vi a imagem, antes mesmo de descortinar que modelo de Lambretta faz parelha com a belíssima Li 150, foi a de saber o que levará o homem de fato na mala. Os documentos da Li ?!? A declaração de venda ? Uma encomenda de gelados para o Brighton Coffee Bar ?!? Na minha primeira observação a mala é o objecto central, quase magnético, da tela.


Claro que, com tantas personagens, as perguntas vêm umas atrás das outras, como as cerejas. Qual o género do(a) fumador(a) de camisola branca e bolsa a tiracolo ? Feminino ou masculino ? E o ar suspeito do homem de fato à frente da montra, também ele fixado na mala castanha do homem confiante de fato cinzento ? O que pretenderá ? Não faltam pistas para um enredo a partir da tela de Trevor Mitchell.  
 
 

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

In the Sticks




Revisitando álbuns de imagens com o rótulo Bianca no assunto, apercebo-me, e com algum arrependimento, que raras são as vezes em que nelas aparece gente. Uma razão óbvia para esse facto é a circunstância de maioritariamente viajar sozinho. Outra poderia ser, talvez, o facto de me deslumbrar mais com a natureza em bruto do que com a própria natureza humana. Mas suspeito que esta última razão não será verdadeira. Não são muitos os perfis que aqui registo em imagens, mas talvez por conveniência conjuntural, ou até alguma timidez.

Registar as imagens deste e não de outro modo é frequentemente um jogo egoísta, em que gosto de me convencer que sou eu que dito as regras da gramática visual. Que faço o papel do maestro. Na verdade, é uma composição a três. Entre mim, a natureza ou alguma intervenção humana nela, e a máquina. A minha função é quase sempre atrás da câmara. Tenho a ilusão de que dirijo, querendo narrar a história. Mas há sempre um limite, um limbo invulnerável, como uma força psíquica na objectiva, na luz e na sombra, que nunca é verdadeiramente controlável. O que eu vi não é o que se vê na imagem. Nem a percepção de quem a interpreta ao olhá-la. 

Os perfis e os retratos são ainda mais complexos, e as histórias dentro deste género revelam um outro potencial. Sempre me pareceu que é aí que a câmara se pode transformar num microscópio.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Ventos e Vales




Entre vinhedos, parei. Era dali que tinha imaginado uma perspectiva diferente sobre a estação. Uns minutos antes tinha estado no apeadeiro, onde constatei que o relógio Paul Garnier desapareceu, como as pessoas que aqui vinham. O celeiro também. Restaram as tábuas, ordeiramente empilhadas junto à rede, como se para ali se deslocassem por acção misteriosa dos ventos. Já estive nesta estação dezenas de vezes, jamais me cruzei aqui com alguém. Ainda recentemente aqui estive, e ainda não tinha percebido que ali em cima, a uma cota um pouco mais alta na colina, entre as vinhas, corria uma estrada de alcatrão, estreita, entre postes eléctricos de madeira, dispostos em ângulos muito diferentes do ideal. Senti-me impelido a descobrir-lhe o ponto de entrada. Queria ver como seria a estação a partir dali. Quando, minutos depois, parei entre os vinhedos, estranhamente não fotografei. O amarelo torrado fundia-se com madeixas alaranjadas no apeadeiro. A luz do fim de tarde de inverno abatia-se numa linha sobre o telhado do edifício ainda digno. Senti uma absoluta desnecessidade de fotografar. E agradeci o deslumbramento das coisas simples. Esperei apenas que a sombra engolisse a estação. O cenário era perfeito, a metáfora da linha ferroviária como a linha do tempo, lá em baixo, entre vales, a correr da esquerda para a direita, e o apeadeiro quase ao centro, a representar o presente. À esquerda, o passado. À direita, o futuro, o que me falta viver. Não se fotografa o futuro. Todos sabemos que a câmara mente. O tempo todo.