domingo, 11 de março de 2018

A Serra Que Não Perdoa




Neste blog, a Serra escreve-se com maiúsculas, porque sendo uma entidade imperial, impõe respeito e dita leis.   

Este ano a lei meteorológica repetiu 2017. O que implicou chuva, vento e neve em doses certamente desaconselháveis a quem, montado em scooter, se pretende dirigir à imperatriz a 1993 metros de altitude.

O preço total a pagar pelos súbditos declinou-se em várias parcelas, algumas ainda por apurar.

Precipitação copiosa e permanente durante a viagem de cerca de dez horas até aos 1500 metros de altitude das Penhas da Saúde, local de abrigo durante o fim de semana. Nas Penhas fomos recebidos logo na noite de sexta-feira com um longo nevão a cobrir de branco os pequenos mas bravos engenhos.

Desconforto geral com parte do equipamento de motociclista que levei, as botas Alpinestars já com alguns anos foram incapazes de lidar com a chuva e gelaram-me os pés todo o fim-de- semana, depois de há dois anos me salvarem o pé direito no gelo debaixo do estrado da Bala. Este ano até o casaco Rev It! mostrou as suas limitações de impermeabilização. E as luvas ? Foi necessário recorrer à boa técnica das luvas de plástico das estações de serviço para poupar pares de luvas utilizáveis e suficientes para sobreviver ao dilúvio.

Mas as parcelas maiores do preço começaram a ser pagas pelo grupo de quatro que, saindo de Lisboa, viu o primeiro contratempo manifestar-se com pouco mais de quinze quilómetros de viagem.

O Júlio desapareceu no spray dos meus espelhos depois de uma ultrapassagem a um camião TIR na subida para Montachique na A8. As condições de visibilidade eram bastante más e reduzimos o ritmo, até pararmos junto à saída da Malveira. Como o Júlio não aparecia ligámos-lhe e do outro lado da linha ouvia-se uma voz desalentada pela incapacidade para pôr a PX 177 a trabalhar de forma suficiente para prosseguir. Verificações básicas e instruções telefónicas do imbatível Manel da Oldscooter ditaram a decisão de viajar até à oficina, mesmo em dificuldades, para debelar o problema que parecia eléctrico. O reboque mostrou-se inevitável depois de uma tímida tentativa de alcançar a oficina, e que morreu junto às portagens. Reboque para a Oldscooter e primeira desistência.

Os três sobreviventes prosseguiram viagem com o azimute sempre para nordeste, a entrar pelo coração do Centro de Portugal, devastado e vestido de negro pelas duas ceifas de lume de Junho e Outubro que queimou mais de cem vidas e um território florestal velho e abandonado à sua sorte.

Foi a fotografar à chuva numa das pontes sobre o Zêzere, rio que nasce na Serra e que estica os seus braços em tanto desse território hoje negro, que li uma mensagem que o Júlio me enviou. Já estava em Santarém, vindo por auto-estrada, em grande ritmo, e numa PX ressuscitada após um rápido pit-stop na Oldscooter.



Do encolhido grupo a três, voltaríamos a ser quatro ao almoço na Sertã, quando o Júlio se juntou a nós a tempo de equilibrar a nossa ementa de maranhos, bucho e feijoada com a sua típica e alternativa escolha vegetariana.




A partir daí a viagem continuou molhada, a espaços com o Luís Pato e o presidente Rui Ferrari a integrar a pequena caravana, mas como queríamos curvas e tínhamos vontade de ir pelo caminho mais longo seguimos o sinuoso mapa das estradas estreitas.

A chegada nocturna, com nevoeiro e os primeiros sinais de nevão abriram o programa na Pousada: arroz de zimbro no renovado restaurante Varandas da Estrela para aquecer o estômago, e durante o dia conversa, ping-pong e matraquilhos até decidirmos se havia condições para ir á Covilhã almoçar. O Rui Ferrari foi fazer o shake down com a estrada ainda bem branca de neve e sobreviveu. Estive para optar por um dos lugares de carro disponíveis, mas decidi ir de X8. Fiz bem.














O regresso no domingo começou com a segunda tentativa de subir à Torre. No sábado já tinha tentado quando subia da Covilhã, mas a visibilidade para lá do Centro de Limpeza de Neve era nula e seria só estúpido tentar prosseguir.

Mas domingo de manhã o céu estava azul, com umas nuvens lá ao longe.






Subimos até Piornos e a estrada tinha acabado de abrir. Longa fila de carros em andamento lento, algum gelo nas bermas e muito gelo no sentido descendente, com os limpa neves e aquela máquina com o rolo de quebrar gelo a descer furiosamente vindos da Torre. Começámos a ultrapassar um a um os carros que se iam imobilizando, até chegarmos ao primeiro deles, a ser empurrado a subir e numa zona com gelo (!), e que estava a criar um engarrafamento confrangedor. Era um Porsche.

Sorri dentro do capacete, contornámos o Porsche do alto da nossa cavalagem imponente e tivemos, durante uns bons minutos, a Serra só para nós.

O acesso à Torre continuava fechado e optámos por descer e não esperar ao frio, apesar do risco que a faixa de descida oferecia, ainda com algum gelo.

À frente ia o Miguel e o Paulo, o Júlio tinha optado por ir mais cedo para descer por Unhais. Ao chegar perto do cruzamento para Unhais, o cabo do acelerador do Miguel prendeu. Susto. Análise rápida e início dos trabalhos de reparação, a experiência do Paulo ensinou-lhe que um serra-cabos a mais no porta luvas não é miudeza que se possa dispensar. Gelados, a 1600 metros de altitude, convém ter os minutos contados para a reparação, não há tempo a perder. Cabeçote desmontado, dedos finos para encaixar o serra-cabos novo e, talvez uns quinze minutos depois, estávamos a rolar.










Foi o tempo suficiente para o sol desaparecer e o tempo virar por completo. Chuva e nevoeiro a tapar o até então céu azul com as nuvens longínquas de há meia hora.

Descemos sem história e cada vez menos gelo e só aquecemos as mãos e a alma num café já no Fundão, com a chuva a dar-nos uma curta trégua.

Seguimos por Ródão e as incríveis curvas até Nisa, onde almoçámos. Depois de Nisa chovia intensamente. Numa das longas rectas ladeadas por esparsos sobreiros a caminho do Gavião a PX Quattrini do Paulo aqueceu. E parou. O que é Paulo ? Balon fora, e alguns minutos depois decidia-se que não era possível prosseguir. Avaria eléctrica, impossível de reparar totalmente desprotegidos da intempérie, sem qualquer abrigo nos quilómetros mais próximos. Reboque pela segunda vez em mais de trinta anos na Luíza.







A viagem do Paulo à Serra terminava aqui, às portas do Gavião, em cima do reboque. Entretanto, quando eu e o Miguel já estávamos a arrancar, aparecem no dilúvio o Júlio e o Luís Pato.

“O que aconteceu ?”

O Paulo avariou. Nós vamos seguir pela A23, daqui a pouco mais de uma hora é noite.”

“Ok.”

Eu e o Miguel arrancámos. Soubemos depois que o Júlio avariou novamente ali quando quis voltar a arrancar (!).

Entretanto seguimos para o Gavião para abastecer e descemos a bela Belver, para apanhar a A23 mais à frente. Chuva e spray gigantes, atenção redobrada para os ritmos de auto estrada em escuro domingo à tarde, parecia uma viagem marítima em cargueiro em dia de tempestade.

Depois da portagem para entrar na A1, o Miguel encosta devagar na faixa de aceleração, sem potência.

A cambota do 200 entregou a alma ao criador.

Mais um reboque.      



Segui eu, o último dos quatro, na única scooter de plástico, até Lisboa, já de noite.

A Serra não perdoa.



7 comentários:

Cantifas disse...

Muito bom este relato! Obrigado

Rui Tavares disse...

Afinal os milagres acontecem.
O Tupperware foi e voltou, nas mão de um commuter de scooter a quem a estrada não intimida.
De novo falhei ir à Serra. Apesar de ter optado por usar duas rodas no meu dia a dia, praticamente todos os dias, já desde há um ano, tenho saudades de conduzir. De conduzir em estradas, das curvas a vertiginosas velocidades de 60 ou até mesmo 80 Km'h. De respirar. Foi duro, percebo, mas de certeza que mesmo sabendo antecipadamente o que iria acontecer, nenhum de vós teria deixado de tentar. Parabéns aos quatro.
.
.
.
.
.
.
.
Pronto, ao Tupperware também :)

Julio disse...

Vasco, eu e o Pato acabámos por não descer por Unhais. Quando chegámos ao cruzamento junto ao Centro Limpeza de Neve, um pouco antes de vocês, a estrada estava fechada, e resolvemos descer por Manteigas e daí fomos até à Sortelha explorar as ruínas do Hotel "Aguas de Rádium". Um momento bem giro do passeio.
E sobre o segundo amuo da minha PX, que aconteceu quando encostei atrás do reboque onde estava já a Luíza, estou convencido que aquilo foi "manha". A vespa vinha a andar muito bem, há já muitos km´s. Assim que parei atrás do reboque, calou-se e negava-se a voltar a trabalhar. O diagnóstico parece-me evidente... Olhando para o espaço extra que havia no reboque, viu ali uma oportunidade para regressar a casa com menos esforço. Não teve sorte! Com a ajuda do Pato, e o apoio do Manuel da Oldscooter, via telefone, lá conseguimos po--la a trabalhar, e veio a rolar bem até casa, apenas com umas hesitações subtis em altas e sem ralentim. Talvez precise de uma ajuste na carburação.
Apesar de todas as peripécias, mais uma vez, valeu muito a pena!
As idas à Serra são mesmo assim. A imprevisibilidade no tempo, e desta vez até das máquinas, não é um problema, apenas algo que faz parte. Foi um fim-de-semana espectacular!
Venham mais assim!!!

Unknown disse...

Que grande relato...depois de 5 anos seguidos de serra, este ano infelizmente tive “de passar”...a ler este grande testemunho, (como é hábito!) senti aquela “inveja saudável”...embora para mim a viagem do ano passado tenha tido um regresso igual aos teus 3 companheiros de viagem deste ano! :(
Para o ano lá estaremos todos!
Abraço
FV

C disse...

Uiiii! Como se previa este ano foi mesmo a sério!
Dou-vos os parabéns pela coragem e valentia, não sem sentir um pouco da tal inveja boa por não ter podido voltar a participar na aventura.
Grande abraço

Anónimo disse...

Quanto ao "preço" anual que referes, talvez mais correctamente o tributo, exigido pela Serra acabo de confirmar que este ano a Luíza e eu "pagámos" uma bobine de baixa tensão que padeceu mais de falta de qualidade material do que de estragos causados pela expedição praticamente marítima.

Não fora a pena de não ter seguido com os amigos até ao ensopado fim, consideramos "barata a feira" face ao ganho em memórias arrecadadas. :-)

Obrigado pela companhia e pelos registos.

abraço,

Paulo

André Tenente disse...

Parabéns Vasco.

Fizeste um excelente relato da aventura que é ir à Serra faça chuva, sol e neve ;)
Obrigado.

Abraços

André Tenente
PS:Para o ano lá estamos de novo a conquistar a Serra ;)