(continuação)
Caminhar pelas linhas de comboio exige uma cadência diferente do nosso passo comum. As travessas têm um espaçamento que se desencontra com o passo de um adulto. Uma travessa por passo é demais, o que obriga a descer e subir a cada avanço. Tal como para um ciclista que enfrenta a montanha, o segredo está no ritmo. A par da importância deste, anotem o calçado adequado para trekking.
Ignorar os avisos que proibem a caminhada também faz parte. Mesmo em carris desactivados, ainda resiste a tradicional sinalização vertical metálica que interdita o passeio ao sabor da linha. Claro que convém estar atento a zonas de perigo efectivo, como riscos de desmoronamento ou a utilização de explosivos. Felizmente que no fim de semana em que me desloquei ao Tua, não estava em curso nenhuma manobra com TNT.
O acesso ao Viaduto e Túnel das Presas já tem um tapete de madeira central que antecipa a metáfora da auto-estrada do progresso. É um sinal de trabalhos na linha, com vista ao seu desmantelamento. Aliás, bem visível já ao longo dos primeiros quilómetros do vale, onde são vários os troços já sem carris.
Ultrapassar o viaduto a pé já não é um acto que nos faça medir ao centímetro os movimentos de pés, atentas as regras de segurança agora impostas por força do trabalho dos operários. Mas estar lá em cima é daqueles momentos em que nos sentimos vivos. Em que preferíamos que o nosso sangue circulasse a uma temperatura mais baixa.
O Túnel das Presas é relativamente curto e não oferece grande sensação de claustrofobia. Não sei se por causa dos trabalhos em marcha, o facto é que não me cruzei com nenhum morcego, embora a existência de colónias nos túneis seja frequentemente relatada.
À saída do túnel, o som do silêncio domina-nos. E só se quebra com os esparsos diálogos dos habitantes que ainda resistem ao longo do vale. Todos eles representantes tímidos de uma fauna que seguramente já foi exuberante. Imagino que o mesmo se pudesse dizer da flora.
O aparato de máquinas amarelas junto ao rio denuncia a revolução. Embora estejam imóveis hoje, têm vindo a desenhar novas formas para este habitat natural. Esta acção humana tem um nome. E não é bonito: chama-se crime.
Esta foi uma das razões que me fez vir até aqui. Antes que as ruidosas máquinas amarelas afoguem o vale no silêncio definitivo.
O calor do final de Julho não convida a caminhadas. A estação quente aliou-se à curta disponibilidade de tempo para me impedir de avançar tanto quanto gostaria. Nem sequer vinha preparado com um farnel que me permitisse descer ao rio e desfrutar de uma refeição em comunhão com a natureza. Regressei, por isso, quase ao início da linha, para voltar a alcançá-la mais à frente: na Brunheda.
A Brunheda oferece alguns planos muito próximos do paraíso. A imagem que se segue pode materializar o conceito. Pelo menos tal como eu o vejo.
Na forma e na cor, perpassa da imagem um cenário idílico, de rio e linha. Tal qual aqueles cenários de brinquedos construídos com abundantes peças e acessórios com que na minha infância sonhava. Tão perfeitos que quase dispensam o manuseamento pela criança. Só a simples observação já é estimulante.
A Brunheda não é um brinquedo. É real. Infelizmente estamos prestes a destrui-la, tal como todo o troço de linha para sul, pois este é o limite norte previsto para a barragem.
Foi a algumas centenas de metros daqui que se deu o último acidente na Linha, em Agosto de 2008, a última pá de terra atirada sobre o carril em par.
Se dúvidas ainda restassem, a tomada de vistas a sul revela a supremacia política da estrada de alcatrão sobre a estrada de ferro.
A Brunheda foi o último destino planeado desta viagem ao Tua. Em jeito de flashback, podem ver como era a vida da Linha na década de oitenta do século passado.
O azimute deslocou-se então do Tua para o almoço, já que a manhã cheia secundarizou a necessidade do pequeno almoço, que acabei por nem tomar. Carrazeda de Ansiães recebeu-me para abastecer o estômago da Helix e, mais importante, o meu. Desse almoço retenho a quase redundância da faca. Ainda que fosse de papel não deixaria de cortar o genuíno bife mirandês que degustei em troca de oito euros.
A saída de Carrazeda assinalou o início do regresso. O calor tórrido fez-me optar por acompanhar o Douro até à Régua, estrada que para além de mais fresca é bonita. A partir daqui o plano era atingir rapidamente o Vouga até meio da tarde, para encontrar amigos que por ali deambulavam em passeio de scooters. Parei em Viseu, à sombra, para beber água e sair da A24.
Quando retomei a marcha pareceu-me ter a frente instável, o que me fez encostar. Desloquei o tronco para a esquerda, baixando a cabeça na esperança de não ver um pneu com pouca pressão. Uma rápida inspecção lateral não acusou anomalias. Tanto melhor. Retomo a estrada e entro na N16, depois de um SMS em que pedia coordenadas para o encontro. Dois quilómetros adiante sinto nova instabilidade, agora na traseira da comprida Helix. É um furo, não tenho dúvidas ! Berma da estrada. Rogo pragas ao esquecimento da garrafa anti-furo, que anda sempre na mala da Helix, excepto quando é necessária. Uma inspecção ao pneu mais atenta permitiu-me ver a dimensão do problema:

Trata-se de um Metzeler ME7, com menos de três mil quilómetros, e menos de um mês de uso (!) Fez um Lés a Lés e esta viagem. Pese embora a utilização tenha sido intensiva, com temperaturas altas e peso considerável atrás, parece-me que não chocarei consciências se disser que a durabilidade é curta. Corrijo e adjectivo: ridiculamente curta. Este pneu não é de competição, embora se desgaste como tal. A riscar em futuras aquisições.
De volta a Viseu. Viseu não. Travanca da Bodiosa. Perto de Viseu. Ligo ao Duarte que julgava estar por perto, mas estava por Aveiro. Ligo à assistência em viagem e fico a saber que o rebentamento de um pneu não dá direito a reboque. Só um acidente ou uma avaria. E o rebentamento de um pneu não é, diz-me a Logo, uma avaria. Bonito. Resta-me estabelecer contacto com alguma alma, talvez um habitante de Travanca.
Curiosamente não fiquei irritado, nem com vontade de pontapear a Helix. Simplesmente percebi que não seria um furo - mesmo que impedisse a continuação da viagem - que iria apagar o quão gratificante tinha sido o fim de semana. Lembrei-me também de uma frase do meu amigo Zé Paulo, que uma vez me disse que o melhor que lhe aconteceu em Marrocos foi ter ficado uma vez sem gasolina no meio do nada. E eu nem sequer estava em Marrocos, estava a meia dúzia de quilómetros de Viseu!
Olhei em volta e do outro lado da estrada vejo uma vivenda. Interpelo então o senhor Ferreira. Depois de me apresentar, e de ter assistido ao habitual franzir do sobrolho que se segue à resposta à pergunta clássica "de onde vem e para onde vai (nisso)", convenci-o a fazer sair o seu Mercedes azul do quintal, em busca de um anti-furo. Não custava tentar. Regressámos então com o anti-furo comprado na estação de serviço. O resultado já estão a imaginar qual foi. Todo o ar que entrou no Metzeler tubeless saiu lenta e desoladoramente pela tela em carne viva. O que esvaziou a minha esperança de finalizar a viagem em cima da Helix. Sr. Ferreira, tenho que lhe fazer um pedido: importa-se que deixe aqui a scooter à sua guarda por um ou dois dias ? O homem encolheu os ombros e anuiu.
Faltava saber como sair de Travanca da Bodiosa: Pouco passava das cinco e meia da tarde. Ligo à minha mulher, que graças a São Google me diz que tenho um autocarro que parte de Viseu para Lisboa às seis da tarde. O que tornava obrigatório fazer um terceiro pedido ao Sr. Ferreira, que estava nesta altura a dar uma mangueirada dominical ao seu Classe C azul. "Eu levo-o lá". A curta viagem que se seguiu incluiu alta rotação no Mercedes, rotundas ao estilo "eu já cá estava", e as minhas unhas cravadas nas laterais do banco direito. Cheguei ao terminal dos autocarros vivo e ainda faltavam dois minutos para as seis! Obrigado, Sr. Ferreira!

A viagem parou aqui para a Helix. O autocarro levou-me tranquila e lentamente até Lisboa, onde cheguei ao cair da noite. Aproveitei para fazer um telefonema ao meu amigo Paulo Salgado que deu início a uma outra viagem. A de um pneu para a Helix que saiu, no dia seguinte, de Guimarães para Mangualde. A recolhê-lo estaria o Duarte, que me levou o novo pneu e a Helix, de carrinha, de Travanca para a oficina em Mangualde. Obrigado, amigos!
No final da tarde da sexta feira seguinte viajei até Aveiro, onde tinha à minha espera o Duarte e sua deslumbrante Lambretta Li 150 artilhada até aos dentes, acompanhados pelo restante gang de Aveiro, onde jantámos. Ceámos já em Mangualde, onde recolhi a Helix com sola nova já passava da meia noite.
A conversa ia longa, o petisco entusiasmava, e já eram duas da manhã quando me despedi e saí para casa, a solo. A noite estava clara em Mangualde, que dormia serena quando a deixei para trás. Não chegava a trezentos quilómetros e a quatro horas a distância para a minha cama. Quase nada para fechar a viagem da semana anterior. Afinal, até gosto de viajar no fresco da madrugada.
Tenho dúvidas que furar, perder o blusão e o cartão multibanco tenham sido o melhor que me aconteceu na viagem. Mas seguramente que nenhuma destas peripécias foi negativamente importante. Só abriu chavetas de oportunidades que gosto de manter abertas. O blusão apareceu, foi-me enviado intacto por correio por um habitante de Verride que o recolhera, assim como o cartão multibanco, que entregou ao balcão do Banco na segunda-feira seguinte. Que sorte que tenho. A generosidade pura dos amigos e a genuína ajuda dos desconhecidos. Que viagem.