Reconheço que é um exercício difícil. Explicar a alguém porque motivo faz sentido utilizar a scooter para fazer uma centena de quilómetros diários justamente agora que o frio parece querer gelar-me os ossos e a chuva teima em não deixar de cair. Fora de mim, para lá do meu fato de chuva.
A estrada esconde-se por debaixo da película de água e da viseira do meu capacete escorrem rios de gotas. Escondo-me também. No meu escudo, no meu mundo, no meu fundo. No meu silêncio disfarçado pelo ruído do escape. Estranhamente, é na aparente claustrofobia da imersão no equipamento, nesse silêncio para além da máquina, que muitas vezes encontro espaço para falar comigo.
Parece um absurdo, eu sei. Até porque é à chuva que a condução em duas rodas se torna especialmente delicada, exigindo ainda maior apuro dos sentidos. Tudo se torna mais difícil. O doseamento da travagem e da aceleração, o equilíbrio em curva, o vento, as marcas das passadeiras, as tampas de esgoto, as juntas das pontes e viadutos, a visibilidade reduzida, os automobilistas ainda mais distraídos. Tudo isto retira espaço à introspecção. A impressão que tenho talvez seja errada, mas é como se o cérebro processasse com outra rapidez a informação. Como se fosse outra a gaveta de cansaço, diferente daquela que costumo usar quotidianamente. É certo que as viagens, feitas assim, são objectivamente mais cansativas do ponto de vista da condução. Mas nunca dou comigo a pensar que preferia ter levado o carro. Isso basta-me. Eis as verdadeiras razões pelas quais os meus odómetros parecem rolar mais à chuva.
4 comentários:
Contra tudo e contra todos, ultimamente, também o tenho feito cada vez mais, inclusive, em trajectos de passeio...
Primeiro estranha-se, depois entranha-se (o gosto por estas coisas)..
:)
Sérgio
Não é uma escolha racional, heim? Pelo menos, de acordo com o senso comum. Só entende quem o faz e é verdade que não é fácil explicar o porquê. Tu fizeste-o muito bem e a fotografia é também excelente.
Ze Paulo.
Quem disse que uma escolha tem de ser racional?
Se nos der gozo...
Quando começámos a andar de mota, todas as sensações eram vividas de uma forma diferente. O prazer que se retirava de cada nova evolução de condução, o desenhar as curvas dava um gozo que cada um ainda se deve lembrar. Sorriamos instintivamente. Ainda hoje isso acontece quando se experimenta ou conduz algo que gostamos pela primeira vez.
Quando andamos à chuva, voltamos a esse início de certa forma. O dominar de forma consciente algo que sentimos ter limitações acrescidas e cuidados (pois nunca somos donos e senhores das situações), faz-nos despertar esse sorriso invisivel e o tal prazer que conseguiste descrever no teu texto.
Miguel
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