(continuação)
Cheguei à Estação. Ainda é cedo, mas o sol já está desconfortável, queima-me a pele. As sombras são escassas mas pouco concorridas. Na verdade, o meu campo visual está quase vazio de gente. Ao fundo, dois homens desmontam andaimes de um palco que lentamente vai deixando de o ser. Ao longo do ramal da linha desactivado, ouve-se o tilintar de garrafas vazias ao encontro de outras. São dois outros homens que vão enchendo grandes sacos verdes do vidro gasto, sinal do enterro da festa da véspera em Foz Tua Estação.
O espaço em volta é amplo. Abro a mala e fico indeciso na escolha dos acessórios para acoplar ao corpo da Nikon. É a habitual dificuldade em focar-me rapidamente quando chego a um território novo pleno de interesse. Como escolher o que captar primeiro ? Um detalhe ou um plano largo ? Decido carregar o cinto com o material que antecipo vir a precisar, para evitar voltar frequentemente à scooter.
O que vejo é um cenário a duas velocidades, tal como no Pocinho. Mas aqui, em Foz Tua, não estão separados por trezentos metros de linha. Estão arrumados num espaço físico mais concentrado.
Por um lado a estação central, que antevejo ser o íman em torno do qual se gravita.
Cuidada, preservada na madeira, no azulejo, na pedra. Sem guarda aparente e com um pequeno mas digno museu aberto, com peças do mundo ferroviário, onde me refugiei aproveitando a sombra fresca. Reparem no pormenor da inscrição na moldura de pedra da porta principal: Grande Velocidade.
Em volta deste prenúncio do TGV duriense, vejo o outro lado. Aquele em que o cuidado dá lugar ao desleixo, em que o primor cede perante o abandono. Este património ferroviário merecia mais. Memória e respeito.
Estas são composições cuja dignidade é há muito ignorada. Esventradas pelo catálogo das dilinquências, não respondem à pergunta mais simples: como é possível ter-se chegado aqui ?
O estado de conservação desta locomotiva a vapor, que esteve ao serviço na Linha, dispensa qualquer legenda. Neste primeiro plano assemelha-se a um navio naufragado.
O abandono destes pedaços de história à sorte, à inclemência da erosão do tempo e, sobretudo, à acção do vandalismo mentecapto, ultrapassa os limites da negligência. Todo este material circulante agoniza hoje na Estação de Foz Tua, sem que uma luz se vislumbre no final do verdadeiro túnel negro que é o futuro da ferrovia portuguesa. Muito mais do que das palavras, é das imagens que me sirvo para contar a história.
Saí da Estação de Foz Tua com uma sensação paradoxal. Vi o que tinha para ver. Triste fado o dos caminhos de ferro. Só vestindo a pele do fotógrafo, mais frio e protegido pela câmera documentalista, me senti confortável.
À direita da Helix o quilómetro um dos mais de cento e trinta da Linha do Tua. Vou fazer os primeiros a pé...
2 comentários:
Preso na continuação do teu relato!... Conheces o filme do Jorge Pelicano, cujo título tantas vezes encontraste ao longo do teu passeio? "Pare Escute e Olhe": http://pareescuteolhe.com/ Se ainda não, depois do teu passeio é incontornável.
Obrigado, Zé Paulo. Há muitos anos que paro, escuto e olho :)
As estradas de ferro são uma paixão antiga.
Conheço o filme, claro. É impossível não me sentir identificado com aquele olhar.
Ainda não comprei o DVD, que tem extras que valem a pena. Tenho que tratar disso rapidamente.
Um abraço,
Vasco
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