segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Linha Tua (III)




(continuação)

Enquanto o Pocinho ficava para trás, descobri que não conseguiria ladear o Douro tão perto da linha como previra inicialmente. Duas tentativas infrutíferas desapontaram-me. E ainda bem. Porque a estrada alternativa, mais longe do rio, é um tributo aos relevos do Alto Douro Vinhateiro, tão apertada entre muros como os socalcos que moldam a encosta. As curvas lentas incitam-me a desviar as pontas dos pés para fora do estrado, raspando ligeiramente as botas para me divertir ainda mais. A quarenta quilómetros por hora. Declaro, portanto, como falso que a condução empenhada seja interdita a esta velocidade.

No planalto, volto ao mapa. Surpreendido, descubro que quase nem me movi. Os ponteiros do relógio contam-me uma versão diferente da história. Atravesso aldeias. Santo Amaro, Mós. Cumprimento todos aqueles por quem passo. Aceno com a cabeça ou levanto o braço. Todos eles me retribuem, dirigindo-me um olhar acolhedor quando lhes entro pela aldeia, sem bater à porta.



Estou na N324. Não registei imagens aqui. Ao longe vi um castelo, Freixo de Numão, bem alto. Devia lá ir, mas não posso iludir-me, é imperioso fazer opções e apenas conto com um fim de semana disponível no bolso. Vou virar à direita, para Sebadelhe, entrando na N222.

São João da Pesqueira é a porta que escolho para voltar a entrar no Douro. Cachão da Valeira, talvez o mais tortuoso e caprichoso pedaço do rio, encravado pelas escarpas tão abruptas, só domado pela barragem. Passei aqui no Lés a Lés de 2009, ao levantar do dia, vindo de Boticas. Agora passo no sentido contrário, e com a linha do sol cada vez mais alta nos topos das encostas.

Depois de parar para ouvir o silêncio, e o eco do vê cavado pela natureza, vejo um comboio na linha. Aproxima-se no sentido Porto-Pocinho. Sigo-o com o olhar até entrar no túnel da barragem. Sento-me na Helix, arranco e vejo um cruzamento à esquerda com uma placa que anuncia: Alegria - Estação. Lembro-me deste cruzamento. E de não ter tido tempo, em 2009, para espreitar. Levanto a luva para ver o relógio, subo o pescoço para olhar a luz e convenço-me que será a última oportunidade do dia para obrigar a Nikon a trabalhar.

Desço devagar, o caminho é mesmo isso, tem pouco de estrada. À direita detenho-me para ver um esplêndido laranjal, num socalco improvável, quase ao nível do rio, talvez uma dúzia de árvores de fruto cuidadas. Resisto à tentação de provar uma. Prossigo até ao apeadeiro e encosto a Helix quase paralela à linha. 




É difícil imaginar que este apeadeiro sirva ou tenha servido população. Está pintado, tem horários afixados. Mas não tem janelas. Na verdade, tem-nas. Mas não são de vidro, estão desenhadas a tinta no seu lugar para nos dar a ilusão visual da sua existência. Em volta, apenas se vislubram três casas em pedra, duas delas em completa ruína. A terceira, imagino que talvez seja de quem tão bem cuida do laranjal.     









São nove e meia quando arrumo a máquina. Estou sozinho na estrada, talvez ninguém se lembre deste lugar. Há mais de meia hora que não me cruzo com ninguém. A noite vai cobrindo o espaço, as estrelas ganham a luz que nos falta aqui. Abrando para me despedir do laranjal, e abro o acelerador para vencer a subida íngreme.

Não vou a Carrazeda de Ansiães, porque encontro uma placa que me aponta as rodas na direcção de Alijó, onde irei dormir. Enquanto conduzo os últimos quilómetros do dia, recapitulo o seu filme. Em cheio. Já perdi o casaco, o cartão multibanco, mas não tenho frio e há outro cartão na carteira. Posso, portanto, pagar o jantar e a pousada. 

*** 

O sono retemperou-me as forças e o Domingo começa cedo. Salto o pequeno almoço, que tomarei mais à frente, pois o horário da pousada é incompatível com o meu plano.







Impressionou-me a robusta dimensão e equipamentos de Alijó. A revisitar em breve. Por agora estou na N212, descobrindo as mesmas curvas que fizera como as últimas no dia anterior à noite, com o cansaço de quinhentos quilómetros e dezasseis horas de viagem. Levanto a viseira para sentir o fresco da manhã.







Estou a chegar, por fim, ao Tua. Sou recebido pelo comboio, que me dá as boas vindas em cima da ponte metálica que testemunha o encontro do Tua com o Douro.


   

Desço à ponte rodoviária sobre o Tua, para dali observar a monumental primeira ponte ferroviária da Linha: o Viaduto das Presas e o subsequente Túnel das Presas. Este conjunto carimba o bilhete de acesso aos silêncios do Vale do Tua e à sua magia. A esta notável obra de engenharia ameaçada pela barragem voltarei noutro post.








De novo na Helix e de volta à estrada, embora por pouco tempo. Opto por começar pela Estação de Foz Tua. Descubro, de caminho, um acesso a um apeadeiro vizinho, na Linha do Douro: S. Mamede de Tua. Na descida, mais património vitivinícola abandonado, e mais um nome que reconheço desde sempre. 








O tempo voa. Assalta-me a sensação da sua falta, mais um dia encaixado na agenda e o ritmo seria outro. Inverto a marcha e deixo para trás S. Mamede. Vou, finalmente, mergulhar na Estação de Foz Tua.

3 comentários:

Anónimo disse...

Boas.

O Castelo de freixo Numão é muito belo, e muito bem conservado, a visitar sem dúvida...

Jota disse...

Grande "report"!!
Grandes imagens!!

abraço!

VCS disse...

Anónimo,

Tive a curiosidade de ir ver imagens do castelo de Freixo Numão, onde nunca estive, e ficou no meu radar para uma visita numa futura viagem naquelas latitudes.

Vasco


Jota,

Obrigado pelas palavras.
A próxima crónica está a caminho :)

Abraço,
Vasco