sábado, 6 de agosto de 2011

Linha Tua




Há duas décadas que venho ouvindo falar da Linha Ferroviária do Tua. Só por uma vez lá tinha estado, em 1990. Mas nunca cheguei a percorrer, de comboio, um único dos cento e trinta e três quilómetros da linha, que liga a Foz do Tua - que desagua no Douro - a Bragança. Ameaçada de morte, a Linha está em coma profundo desde 1992, quando se iniciou a amputação de troços que lhe quebraram parte do imenso encanto, e lhe feriram a coerência do traçado inicial. 

Um fim de semana livre foi a oportunidade certa para empreender esse passeio, mas agora para revisitar o espaço e o seu abandono. Talvez pela última vez, atentos os avanços registados na futura barragem, que irá submergir boa parte da Linha, ou do que dela resta, e do esplendoroso Vale do Tua.

A viagem não tinha um plano fixo, como prefiro. Sabia que ia dispensar o campismo, e por isso optei pela Bianca, cuja capacidade de carga instalada é muito inferior à da Helix. Calculei a bagagem com essa limitação em mente, mas na garagem rapidamente percebi que não conseguiria levar o que pretendia na Bianca, a começar pelo imprescindível equipamento fotográfico. O que me fez regressar à minha grande scooter de viagem, como gosto de lhe chamar.

Pelas seis da manhã de sábado já estava na estrada, a caminho do norte. É a minha hora de saída por excelência, não há trânsito e a luz apresenta-se em slow motion, parece mais lenta do que realmente é, até aparecerem os primeiros raios de sol. Aproveito para parar com meia hora de viagem e tirar a máquina do saco pela primeira vez, atraído pelas texturas e cor reflectida no cenário.








Por cima do pequeno road book com distâncias e referências sobre a Linha do Tua, cuidadosamente enrolado no respectivo suporte, assinalei com um post it amarelo um local que me escapa há dois ou três anos, e que pensei que finalmente conseguiria ter tempo para ver no caminho.







Trata-se de um apeadeiro que se consegue vislumbrar na partir de um dos viadutos da A17, não muito longe da saída para a Figueira da Foz. Reveles é o seu nome. Estranho nome, que mal aparece no meu mapa e fica envolto em campos de cultivo, em regra arrozais. Estamos perto do Mondego.

Uma das regras simples que me obrigo a seguir e que faz parte do ritual do passeio é a de proibir o uso de GPS. O google maps serve apenas para explorar previamente, e em casa, o potencial interesse de uma certa região. A partir daí, mapa. À antiga. Dobrável, em papel, prefiro-o à voz entediante da máquina, e ao patético e titubeante movimento da seta no ecrã.

Além disso, o aparelhómetro pede-me sempre um destino. Eu não estou interessado no destino. O destino não é mais do que um pretexto para conhecer o caminho. O GPS não percebe isto, por mais que lhe tente explicar. Ainda por cima irrita-se e repete-se quando eu próprio quero comandar o meu destino, o que me parece elementar. Julgo que concordarão comigo se disser que o tal GPS é um aparelho que incita a passividade. Conceito que rima mais com automóvel do que com scooter.







As margens do Mondego recebem-me através de linhas rectas que recortam a régua e esquadro o terreno fértil. Ainda é cedo, tenho todo o dia pela frente e a paisagem reclama um olhar mais abrangente, preciso de subir a minha cota para uma perspectiva que me deixe ver o horizonte, rodando sobre o meu eixo trezentos e sessenta graus.

A grande angular distorce a imagem, mas permite-me traduzir-vos apenas um pequeno lance do movimento. Lastimo, mas para praticar este exercício não podem estar onde estão, em frente a esse ecrã. É necessário ir lá. 




Ainda não tinha chegado ao apeadeiro que me serviu de pretexto para lançar a bússula nesta direcção, e já estava a ser presenteado com cenários inéditos, em modo bónus. É necessária alguma disponibilidade de tempo para estarmos verdadeiramente receptivos à descoberta. Para observar e aceitar o que se nos apresenta, interagindo. Ou simplesmente contemplando. O que, em certo sentido, já é uma forma de interacção. 




A posição da luz solar denuncia o horário matinal arrojado, mais adequado ao descanso de um sábado na cama. Sinto-me leve. Para contrariar a manhã já quente, decido tirar o blusão de cordura, que habitualmente prendo com os esticadores na tampa da top case, mesmo em viagem.








Reveles é um apeadeiro de horizonte largo. Não há ruído, e o movimento é aparentemente ausente. Apenas um eco longínquo de uma máquina agrícola me distrai, trazido pelo vento fraco. 





Gosto do desenho da língua do abrigo. Austero e grave, é suavizado pela curva descrita pelos carris. Enquanto reparo, chega um carro que apeia uma mãe e um filho, sinal de passagem iminente de comboio. 









Não verei  o comboio aqui, porque decido perder-me pelos acessos aos campos. Ao longe vê-se uma comprida ponte metálica, caixa cinzenta repleta de traves e aparentemente frágil para onde a composição se lança em ritmo mais compassado.



Regresso ao canal contíguo ao caminho onde parei para ver a passagem do combóio, que apreciei em duas paragens seguidas e uma ponte, a partir do mesmo ponto de vista, e ao longo de uma meia dúzia de minutos, até desaparecer do meu campo visual. Olho para a Helix através da Nikon e disparo o obturador.
 
 




Reparo então que falta algo na tampa da mala. O blusão (!?!). Volto agora ao ecrã da Nikon, procurando por uma imagem em que o encontre para definir o trajecto em que o perdi. São nove e meia da manhã de sábado, estou a cento e cinquenta quilómetros de casa, no início de um fim de semana a caminho de Trás os Montes, de scooter, de t-shirt e sem o cartão multibanco. O blusão, não o encontrei.

11 comentários:

Rui Tavares disse...

Tinha-me já recostado com a perspectiva de uma boa hora de leitura, mas são nove e meia e afinal ficou o resto para o próximo episódio. Tudo bem, eu espero. Já em miúdo esperava semanalmente pela revista Tintim, com as suas bandas desenhadas a serem apresentadas em continuação, duas páginas por semana.

Anónimo disse...

Que magnifico relato...
Mal posso esperar pelo resto.
CBranco

Barreto disse...

eu avisei... a linha junto ao mondego vale bem a visita! e os campos de arroz alargam muito o horizonte... até breve.

paulo salgado disse...

Lindo relato,andas sempre a passear,conta o resto,quero ver se apareceu o blusao

VCS disse...

Rui,

Agora com o Tintin fizeste-me lembrar as tiras do Calvin & Hobbes.
Aos Domingos eram maiores e também esperava por elas, embora fossem sempre histórias curtas. Em regra, sem continuação na edição seguinte.

CBranco,

Grazie.


Abraços,
Vasco

VCS disse...

Barreto,

Tinhas razão! Confesso que não tinha criado grandes expectativas, mas os campos perdem-se de vista. É fácil deixar escapar a noção do tempo quando rolamos por ali.

Abraço,
Vasco

VCS disse...

Paulo,

É verdade que tenho passeado bastante este verão, tenho tido sorte.
Quanto ao resto da história, vais ter que te manter ligado. Mas já sabes que participas nela, embora à distância...

Um abraço,
Vasco

Cavok disse...

Para variar, excelente relato de uma viagem, ou melhor; do início de uma viagem.

VCS disse...

Cavok,

Obrigado. Se gostaste vais ter que te manter sintonizado :)

Abraço,
Vasco

TodayAdventure disse...

Tenho um terrível problema de NUNCA subscrever nenhum blog... nem os meus favoritos, como este do Vasco. Por isso não acompanho, ao minuto, estes magníficos relatos. Apesar disso, e como não perdem actualidade (longe disso) e como eu acabo por visitar sempre aqueles de que gosto, mais tarde ou mais cedo caio aqui. Aconteceu (só) hoje. A grande angular do Vasco ao ataque das terras transmontanas. :) Magníficas fotos, como de costume. Um viajante nato, discretamente escondido entre a multidão!

TodayAdventure disse...

Concordo a 110% com esta: "É necessária alguma disponibilidade de tempo para estarmos verdadeiramente receptivos à descoberta". É também por isso que muitos descobriram como é diferente viajar devagar. Discordo um pouco, no tema GPS. O GPS é uma companhia, dispensável em muitos casos, mas com muitas utilidades. Primeira: guardar o trajecto, assinalar pontos excepcionais. Segunda: orientarmo-nos em cidade, quando perdermo-nos propositadamente não é uma prioridade. Terceiro: em "fora de estrada", ter mapas topográficos é magnífico para descobrir caminhos. Navegar em azimute com GPS é muito confortável. Claro que nada que uma bússola e a observação da posição do sol não permita. :) Eu levo quase sempre um GPS em viagem, mas só em casos muito pontuais o uso. Os mapas são a minha orientação nº 1. Finalmente: quando se marca um destino, a ideia não é ir por onde a máquina nos "manda", mas ter uma referência razoável e ir constantemente desobedecendo pelo caminho (o bicho está sempre pronto a recalcular a rota). :)