quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Lés a Lés 2008


imagem:  Júlio Santos

Traçar uma linha tremida no mapa de Portugal começando em Bragança e terminando em Sagres. Conhecer os cantos e recantos do nosso rectângulo de norte a sul. É esta a ideia do Portugal de Lés-a-Lés, evento mototurístico único na Europa.

A ideia de participar no Lés-a-Lés já vinha de longe mas várias vicissitudes acabaram por me conduzir à estreia apenas em 2008. Sendo uma prova atípica, em que não existe competição entre os participantes, ostenta uma vertente cultural, com enfoque na divulgação do nosso património histórico e natural, dando a conhecer aos participantes locais inimagináveis, onde o novelo da história se vai desenrolando à nossa frente e ao sabor de um itinerário preparado com todo o cuidado. É também uma prova muito eclética, em que é possível compatibilizar uma multiplicidade de estilos motociclisticos em ambiente saudável e amistoso. A participação está aberta a qualquer tipo de moto, desde as corajosas clássicas de 50cc até às confortáveis maxi-trails, passando pelos side-cars. Mais do que em qualquer outra moto ou scooter, fazia questão de cruzar o país na minha Vespa Granturismo, uma reinterpretação do charme clássico das Vespa large frame com mecânica do séc. XXI.

Lisboa-Bragança


9.00 da manhã de quarta feira. O dia acordou seco mas as nuvens são ameaçadoras. Não é todos os dias que nos levantamos da cama para fazer cerca de 500kms de Vespa. Temos o dia todo para ligar a capital a Bragança, cidade que recebe a partida do 10º Portugal de Lés-a-Lés.

Embora apreensivos pela extensão do primeiro dia de ligação, reina a boa disposição e o optimismo. Já são algumas semanas de preparativos, sendo que a Vespa do Júlio sofreu várias intervenções ao nível do posto de comando que a tornaram mais talhada para estas lides: leitor de road-book, fundamental para nos mantermos no percurso, conta-quilómetros de ciclismo, ideal para leituras parciais, GPS, que se revelou inútil. Tudo com os respectivos suportes. Parece uma Vespa da NASA! Por contraste, a minha GT ostenta a sua silhueta pura e esbelta, sem apetrechos espaciais, apenas um flyscreen original adquirido a contra gosto, mas cuja utilidade fui podendo comprovar na estrada.


A viagem começou em bom ritmo, com a ligação até Leiria a ser o único verdadeiro troço de auto-estrada utilizado nos cerca de 2000kms realizados. Até Coimbra pela vetusta N1, e da cidade do conhecimento a Viseu pelo IP3, seguindo pelo IP5 até Celorico da Beira. Aqui, apontámos a bússola a norte em direcção a Foz Côa pela belíssima N102 que convida a paragens frequentes. Entrada na região duriense, património mundial, até Bragança já ao final da tarde.


O cansaço acumulado durante a viagem não nos impedia de sentir a expectativa em crescendo, no dia seguinte esperava-nos o prólogo.


Bragança-Bragança / Prólogo


Desenhado na magnífica região do Parque de Montesinho, com passagem por aldeias históricas como Rio de Onor, única meio-portuguesa, meio-espanhola, e onde teve início a primeira edição do Lés-a-Lés.


A meteorologia castigou-nos durante os 70 quilómetros previstos, com um relativamente extenso troço de terra (melhor, de lama) a pôr à prova a perícia e capacidade de condução. Nas escorregadias e lamacentas pistas daquele Parque Nacional a Vespa portou-se à altura. Na verdade, apesar das suas pequenas jantes de 12”, o seu baixo centro de gravidade acaba por conferir-lhe um equilíbrio insuspeito em condições de aderência precárias, tornando a desconfortável condução em chuva intensa, um pouco menos difícil e até divertida, assim que nos sentimos mais à vontade.


Tempo também para um primeiro balanço sobre a navegação. A leitura do road book começou algo inconstante. Alguma humidade conseguiu invadir a caixa de suporte do road book e o excesso de tensão nos rolos ditou o rasgar de uma das sete folhas do prólogo. Nesta altura circulávamos na companhia de outras scooters, entre Vespas P125X e GTV 250 e a magnífica Heinkel Tourist do Rui Tavares, com quem chegaríamos a Bragança, já com luz natural baixa.


Bragança–Coimbra


Um número de partida muito baixo permitia-nos sair bem na frente da caravana, pelo que pelas 7.04 da manhã voltámos a subir o encharcado palanque para nos despedirmos da Cidadela de Bragança. A chuva e até algum nevoeiro aconselhavam moderação no andamento, não obstante termos pela frente belas estradas serpenteantes de serra e bom piso. Até ao Vimioso, onde visitámos o singelo Castelo de Algoso, a viagem fez-se em economia de energias, pois só aí foi servido o pequeno almoço, já com o estômago em sacrifício.


Seguiu-se a descida ao Rio Angueira, prosseguindo a viagem por Mogadouro, com os primeiros troços de terra da 1ª Etapa. O sol e a estrada seca deram-nos então as boas-vindas no Parque Natural do Douro Internacional. Enquanto encostávamos para apreciar a paisagem e tirar fotografias, avistámos os raros abutres-do-egipto, ave de impressionante porte e que domina os céus nestas paragens.


Daqui partimos para o miradouro de Penedo Durão, onde se pode apreciar uma extensão considerável do Douro e antecipar a descida a esse rio mítico. Cruzando o Douro em Barca de Alva deixávamos para trás dezenas de curvas ladeadas pelo rio, em comunhão perfeita com a natureza que nos abraçava a cada metro de estrada, sensação que só está ao alcance de quem viaja em duas rodas…melhor ainda se vamos de Vespa!


Sempre em ritmo confortável, em estrada aberta rodávamos entre os 80-100kms/h, o que nos permitia médias de consumo de cerca de 3lts/100kms. Com algum planeamento, e mesmo com um depósito de cerca de 9 litros, tornou-se fácil octanar apenas uma vez na etapa, já em Figueira de Castelo Rodrigo e imediatamente antes da bonita subida à Serra da Marofa. Daqui até Pinhel muitas curvas como aperitivo para o reconfortante almoço que seria servido depois de um percurso exclusivo delineado em torno do Castelo de Pinhel, em que os side-car ficaram de fora, já que a largura das muralhas centenárias não permitiam o seu acesso.


Durante a tarde voltámos ao temporal, com a viagem a ganhar contornos em cinza escuro e a visibilidade a tornar-se difícil. Em boa verdade o percurso também se tornara menos vistoso, descendo por Celorico da Beira, com passagem por Sandomil, S. Gião, Venda de Galizes, Penacova, aqui já pisando a conhecida estrada das beiras (N17), com tráfego mais intenso e pesado.


Na parte final da etapa voltaríamos a ter um curto troço de terra, na tranquila planície de arrozais do Mondego, a convidar ao balanço do dia e a antecipar a chegada ao Estádio de Coimbra, ao fim da tarde, onde o odómetro da GT já acusava quase mais 500 quilómetros.


Cansados mas satisfeitos por mais um dia sem registar problemas, mas com muita estrada para digerir, mais do que aquela que o curto sono permitiria recuperar até à saída madrugadora de sábado: 6.04 da manhã era a hora ditada pelo número de saída…


Coimbra-Sagres


A organização avisou. Seriam 14 horas de etapa para aqueles que conseguissem chegar dentro do tempo previsto. Interiorizámos a mensagem e sabíamos que o mais duro viria neste último dia. Talvez por isso, ou por nem sequer querer pensar que se algo corresse menos bem poderíamos estar facilmente 16, 18 horas em cima da GT, estava algo mais inquieto, para além de cansado… Talvez isso justifique que na saída do palanque, ainda noite escura, tenha soltado um desabafo ao Ernesto Brochado, meio a sério, meio a brincar: “Estou todo partido!”


Seria uma longa e dura prova de resistência, a exigir uma cadência mais elevada, e com menos tempo para descanso. Alguns episódios mais rocambolescos iam servindo para soltar algumas gargalhadas que temperavam a viagem. Uma delas logo nos primeiros quilómetros, com neblina a espaços na estrada, à chegada a Alcabideque: num grupo mais compacto que incluía as nossas duas GT e uma T5, seguia também a Indian Scout de 1928. Com o piso molhado e com pneus e travões idealizados na década de 20 do século passado, foi difícil ao Luís Pinto deter a máquina antes de um inesperado cruzamento numa descida íngreme, pelo que assistimos incrédulos, mesmo ao nosso lado, a uma involuntária ultrapassagem pelo mato da bela americana! Felizmente, alguma sorte e destreza, qualquer delas em doses abundantes, trouxeram a Indian de novo ao caminho… Um episódio selado por dois acenos mútuos em sinal de alívio…


De Alcabideque a Ourém passámos por Rabaçal e Ansião, com a companhia de um verdadeiro dilúvio. Apesar da protecção conferida pelo avental da Vespa, a violência da descarga pôs em evidência as insuficiências do meu impermeável. A partir daqui a viagem fez-se de pernas húmidas, um extra de desconforto que qualquer scooterista dispensa, pois potencia a sempre perigosa desconcentração.


Ainda era cedo quando chegámos a Ourém para uns pastéis de nata quentes no pequeno almoço no Castelo, e daqui seguimos para a Golegã, prosseguindo por Chamusca, Ulme, Montargil, Mora e Brotas, onde parámos para almoço…às 10.20 da manhã! Nunca tínhamos almoçado tão cedo !… A direcção agora era Montemor-o-Novo e era tempo da paisagem alentejana começar a desfilar, com estradas rolantes e percursos rectos, que iam sendo entrecortados por alguns desvios a centros históricos, como Alcáçovas.


Novo percalço com a Indian, a obrigar-nos a uma paragem forçada para uma reparação de emergência no motor com recurso a um parafuso de madeira (!) que haveria de impedir a perda de mais óleo do bloco americano. Reparação rudimentar mas de tal modo eficaz que permitiu a chegada a Sagres da moto mais antiga do plantel... O encanto do Lés-a-Lés também está nestes imprevistos e no modo e com o espírito de entreajuda com que são superados.


Com o cansaço a atingir grande parte da caravana chegaram os troços de terra mais extensos, especialmente penosos para as GT e para a generalidade das scooters e motos de estrada.


A passagem a vau na Ribeira do Torgal (afluente do Rio Mira) também causou
alguns embaraços, com algumas quedas provocadas pela lama a deixarem marcas nas motos dos que não conseguiram manter o equilíbrio. De Odemira a Monchique voltou o bom piso e as curvas da estrada de serra convidaram os mais afoitos a arredondar os pneus. Percurso muito bem-vindo depois da extenuante e menos entusiasmante passagem pela terra.


A descida a Portimão poderia fazer antever uma chegada rápida a Sagres, mas o trajecto haveria de ser feito quer pelo interior, quer pelas estradas junto às praias menos concorridas e desconhecidas (ainda bem!) do Algarve de massas, precisamente as do Concelho de Vila do Bispo. Paisagens deslumbrantes que anteciparam o ambiente de festa que nos acolheu em Sagres, palco da chegada do 10º Portugal de Lés-a-Lés. Cinco dias de estrada, com as nossas duas Vespa Granturismo a acusarem 2060 quilómetros cada no total após o regresso a Lisboa, sem registo de qualquer problema.


O Lés-a-Lés não tem a pretensão de mostrar exaustivamente as regiões atravessadas, até porque o tempo é escasso. Pretende, isso sim, suscitar a curiosidade em cada participante, para que regresse em duas rodas com o road-book, repetindo com outra tranquilidade as secções do percurso que mais o marcaram. É mais do que um concentrado de conhecimento do Portugal profundo. É um inspirador conceito de passeio, de evasão e até desafio, porque permite que cada um de nós viva o seu Lés-a-Lés do modo que mais aprecia, mas sempre em comunhão com a sua moto ou scooter.


A semente ficou lançada. Por mim, partia já para a edição de 2009…Vamos, Vespa?

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