Este texto corresponde à versão longa que o Paulo Simões Coelho escreveu para a Topos & Clássicos de Agosto de 2015. A versão que seguiu para a revista para publicação era mais curta, portanto esta é a primeira vez que o texto original longo é publicado. A leitura da odisseia do Paulo serve não só para fechar com chave de ouro o ano de 2015, mas também como inspiração para os projectos de restauros e viagens de 2016 nas vossas scooters.
Foi na madrugada da segunda etapa
- cerca de 4 anos depois de a ter comprado - que a Heinkel deixou de ser “o
restauro” e se transformou na minha scooter.
Frescos da dormida em Castelo
Branco, descíamos a bom ritmo as curvas que levam à barragem de Vila Velha de
Ródão quando me dei conta que tinha parado de monitorizar a moto e estava só a
gozar a condução, a vista e o fresco da manhã.
Algures nesse troço que eu tão
bem conhecia, desligou-se aquela atenção constante e intensa que procurava
distinguir, de entre o manancial de sensações produzidas por qualquer moto em
movimento, o primeiro pré-aviso de um problema.
Começava a entranhar a moto e, 2.500kms
depois de ter fechado e montado o motor pela primeira vez, tinha começado a
acreditar nela: já não precisava de a vigiar a cada segundo como um namorado nervoso
que procura os indícios do abandono que tanto teme.
De um problema à espera de
acontecer, a Heinkel tinha passado a ser uma scooter confortável, com uma
passada larga e uma imperturbabilidade imperial em curva. Foi nesse tombar de
uma curva para a próxima ao ritmo da estrada, e na companhia dos que compreendem
essa libertação em movimento, que me permiti reconhecer que tinha acabado bem o
restauro da máquina que me transportava.
O caminho que me levou até Ródão
começou com a compra algo impulsiva de uma Heinkel que estava restaurada de
chapa mas bastante cansada de mecânica. Há anos que tomava conta das minhas
motos, culminando na “preparação” (na sala de jantar de nossa casa…) do motor
da Vespa PX que me acompanha desde sempre. Fruto desse projecto, a PX – Luíza
de seu nome - renasceu como uma PX “GT” muito razoável, e veio a acrescentar 2
Lés-a-Lés à sua variada carreira de quase 30 anos nas minhas mãos.
Comparado com projectos anteriores,
a Heinkel foi um passo muito maior, quase maior do que as pernas que o deram,
mas eu queria mesmo compreender, com as mãos e não só com a cabeça, um motor tradicional
a 4 tempos. Por alguma razão decidi que enquanto
não soubesse recuperar e manter cames, balancetes, válvulas, platinados e tudo
o que os rodeava não me poderia considerar competente como mecânico amador.
O rejuvenescimento da Heinkel
avançou sempre por soluços intensos intervalados por longos interregnos, consoante
a intensidade do trabalho que paga as peças, e a minha própria energia. No 1º
ano, por exemplo, não aconteceu grande coisa à parte gastar dinheiro a acumular
peças. Mais tarde, quando ganhei um bom espaço onde trabalhar, houve um ciclo
mais intenso de desmontagem geral que acabou com tudo “arquivado” em tupperwares com notas mais ou menos
claras e muitas fotografias de pequenos bocados de metal.
“Cortei-me” a começar pelo motor,
e refiz primeiro toda a electricidade no quadro nu. Sabia ainda menos de
electricidade do que daquele motor, mas a resistência a começar foi menor. É
claro que, quando mais tarde vim a pôr o motor no sítio, a montagem eléctrica estorvou
um pouco.
A reconstrução do motor tão pouco
seguiu um ritmo regular. A desmontagem e rectificações necessárias foram relativamente
rápidas. Já a parte de baixo do motor só foi fechada após um longo período de
estudo para ganhar balanço. O conjunto da caixa de velocidades e mecanismo de
selecção era a complexidade máxima que tinha tocado até então. Passei dias a
olhar para aquilo, a separar e juntar os carretos; semanas a pensar no conjunto.
Quando se tem os desenhos e o manual, o grosso da informação está lá. O
problema é quando nos pomos a pensar “e aquilo que não está no manual?”.
De certa forma, o desafio principal
do restauro é mais uma questão de persistência, um exercício mental e
psicológico, do que de destreza ou habilidade mecânica. É preciso escolher e,
sobretudo manter ao longo do tempo, um nível de exigência na qualidade. A
seguir é “só” encontrar em nós resistência à frustração quando algo corre mal e
temos um martelo à mão. (Ou uma ferramenta com cabo longo, ou um daqueles
produtos mágicos que colam tudo, vedam tudo, arranjam tudo…).
Afinal de contas, apertar e
desapertar, separar e juntar, ler e seguir as instruções ou especificações do
manual eu sabia fazer. Foram sempre as dúvidas que gastavam o tempo: este encaixe
é para martelar com força? Ou aqueço? Repasso estas roscas gastas com o macho ou
é demasiado arriscado? Esta montagem é para lubrificar ou é a seco? Com ou sem
freio? etc., etc...
Aliás, é só quando se aperta a
última porca de um conjunto qualquer que começam as dúvidas sérias, as que nos
deixam parados dias, semanas... Será que pus as anilhas pela ordem certa? Apertei
bem aquela porca vital que agora está fechada lá dentro? Não me lembro! Abro
para verificar? Mas depois tenho de refazer tudo! Decide!
E depois temos as tarefas que nos
são novas. A remontagem da culassa foi um marco épico, por exemplo, porque eu
nunca tinha rodado válvulas. Li tudo o que encontrei e, sim, o YouTube tem
dúzias de videos a mostrar como se faz mas não é a mesma coisa que já ter feito.
Um dia, finalmente comecei e fiz tudo como nos livros. Quando as montei na
culassa e testei, percebi que não fizera o suficiente: não vedavam. Desmonta e
repete.
Há muito “desmonta e repete”
quando nunca se fez. Há o montar para descobrir e ensaiar o encaixe das coisas
e a sequência pela qual se juntam. A seguir, desmontar e verificar. Se tudo parecer
bem, tem de se remontar mas agora “como deve ser”. É depois da montagem “definitiva”,
e não na verificação anterior, que entra o Murphy e se descobre um erro. Nos
piores casos, descobre-se quando já se montou mais um conjunto qualquer por
cima. “Desmonta os dois e repete...”
Para finais de Novembro, ainda
hoje não sei bem como, percebi que me tinha comprometido com a equipa do
costume em como faria o próximo Lés de Heinkel. O Rui Tavares traria a dele e seria
a primeira vez que duas Heinkels participavam na prova. Convinha bastante que
elas chegassem ao fim se queríamos mesmo demonstrar (a nós próprios? aos
restantes 1.138 participantes?) que fazer o Lés com motos com menos de 50 anos
de idade e mais de 10 cavalos é para meninos...
O motor ainda estava por fechar
em cima da bancada e só tinha 3 meses para acabar se queria testar, rodar e
resolver tudo antes de Junho. Daí para a frente, foi intenso e constante, já
não havia tempo para ter dúvidas.
Ouvi a voz da Heinkel pela 1ª vez
a 1 de Março. Faltava “só” rodar e afinar a moto mas a embraiagem estava
pesadíssima, quase impossível embraiar e passar as mudanças. Infelizmente,
passar as mudanças é “o” desafio notório das Heinkels que requerem muito treino
no comando das velocidades, mesmo quando está tudo bem.
“Desmonta e repete”: lá tirei o
motor e reabri para chegar à embraiagem e verificar a montagem seguindo os
conselhos e diagnósticos telefónicos do Rui e do Ribeiro, “o mago das Heinkels”
da Motocentral. Sem a teimosia e conhecimentos, e as frequentes doses
alternadas de pressão, consolo, descascas, encorajamento e apoio destes dois, a
scooter ainda hoje estaria em bocados numa estante da minha oficina.
Havia mais para “melhorar” na Primavera:
o travão traseiro mal se podia apelidar de abrandador; a peça que comanda o
semfim da bicha do conta-quilómetros partiu duas vezes; havia 2 anilhas a mais
no apoio da frente do motor que ocupavam indevidamente 2 milímetros de espaço e
faziam com que este batesse no quadro quando passávamos por buracos maiores; a
luz dos mínimos e do conta-quilómetros...
Em Abril, a Heinkel andava e até
já tinha umas centenas de quilómetros, mas para fazer o Lés-a-Lés é preciso
mais do que “estar a andar”. Tem de estar tudo bem assente, acamado, ajustado, afinado,
apertado, rodado, estável, sólido... Tomei uma das melhores decisões do
projecto: levei-a para a Póvoa do Varzim para que o Ribeiro pudesse
inspeccionar o meu trabalho, corrigir e resolver o que faltasse. Funcionou; disseram
que era pouca coisa que era só preciso saber um pouco mais, ter experiência e conhecimento
de segredos das Heinkels. Aprendi tanto com eles…
Voltei a rolar para Lisboa num
sábado com bom tempo. Vim lento mas feliz com a homogeneidade geral da condução
(finalmente!), e porque já não era necessário ter o braço do Tarzan Taborda
para embraiar. Comecei a rodagem a sério, e tudo correu bem quase até ao fim
quando, já curto de tempo, fui e vim à Beira - 600kms em 2 dias. No regresso, por
alturas de Vila Franca, o dínamo começou a falhar na carga das baterias.
Faltavam 3 semanas para o Lés e eu a trabalhar dias compridos.
Estava tão perto de alinhar à
partida que não consegui desistir. No sábado seguinte repeti a peregrinação ao
Ribeiro. Lá saiu uma vez mais o motor, e mais uma vez o mago operou a sua magia:
enterrado nas entranhas de um dos suportes das escovas do dínamo descobriu-se um
papel isolador rasgado, o suficiente para permitir a massa onde ela não deve
acontecer.
Já não havia tempo para voltar
para Lisboa. A scooter ficou no Porto à guarda do Rui,
e foi a casa dele que a vim buscar para seguirmos com a equipa até ao palanque
da partida.
Paulo Simões Coelho
Lisboa, Julho 2015
Fotografias nº 1, 5, 12: Paulo Ministro
Fotografias nº 2, 3 e 4: Paulo Simões Coelho
5 comentários:
Ena. Já tenho saudades.
Parabéns ao Paulo Simões pela persistência, e a quem o ajudou.
Obrigado ao Vasco por dar conhecimento deste texto e desta história. É raro vir cá ler qualquer coisa sem levar duas ou três arrepiadelas de emoção.
Um abraço
Filipe
Bela história de fazer inveja.
Uau! :) Que delícia ler este texto. Obrigado.
Abraços,
Júlio
Se gostaste, fica atento aqui: esta semana comecei a comprar peças para recuperar uma alemã do outro lado do muro.
Lá para 2019 devo ter o relato escrito e tento convencer o Vasco a publicar ;)
abraço,
Paulo
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