domingo, 20 de setembro de 2015

Lés a Lés 2015 (V)







Vocês vão nisso até Albufeira ?” A expressão de incredulidade dos transmontanos em Sabrosa é mais ou menos idêntica à que ouvimos em Armamar, em Belmonte ou Flor da Rosa. Usar máquinas lentas por definição e antigas por opção é um capricho difícil de racionalizar.


Afinal, o Portugal de Lés a Lés é uma proposta de passeio da Federação Portuguesa de Motociclismo de pelo menos doze horas de condução diárias em cerca de mil quilómetros, distribuídos por três dias, que liga o norte ao sul do país, num concentrado de estradas antigas, paisagens pouco vistas e gentes autênticas que convidam os mais curiosos ao uso de motos de viagem. Uma larga maioria prefere trails alemãs com três letras e uma hélice no depósito.


Porém, esta escolha óbvia e tecnologicamente inatacável esbarra num pequeno detalhe: antes da descoberta dos IP e auto-estradas, uma viagem pelo Portugal perdido de antanho, pelas estradas de asfalto onde mal cabe um tractor, pelos empedrados, pelos caminhos romanos, pelos seixos e ribeiras, pela terra e pelos xistos soltos, não se fazia com motos com ABS, controlo de tracção, cruise control e  malas de alumínio. Portanto, as cerca de 580 equipas que abordaram  a prova na perspectiva da lógica do conforto e modernidade, viram o problema de fora para dentro. Nós preferimos ver de dentro para fora. Adequar as máquinas ao simbolismo e matriz da prova: era duro percorrer o país naquele tempo. As motos avariavam, eram lentas, inseguras, e exigiam mestria e domínio de um alicate e de um martelo. Havia platinados para afinar. Travões que sobreaqueciam. Carburadores que entupiam. E repará-los na estrada com as ferramentas do porta-luvas é uma oportunidade para aprender e conviver na beira da estrada. Sem reboques nem assistência em viagem. Gera incerteza mas também gargalhadas. Apela ao improviso, à imaginação para a solução de problemas e ao espírito solidário. Aproxima as pessoas no que elas podem ter de mais genuíno.


É por essa razão que de há oito anos a esta parte me vejo sempre nos palanques de partida do Portugal de Lés-a-Lés. Sempre em scooter, clássica ou réplica de clássica, mas com todos os defeitos das primeiras. Este ano levava a minha LML , uma prima da italiana Vespa, mas com controlo de qualidade indiano, e voltava a ter ao meu lado o Rui Tavares, numa alemã bem diferente, com mais letras. A Heinkel Tourist 103 A1 comprada nova pelo seu avô em 1960. Uma scooter com uma rara história de permanência familiar, que passou por tudo: primeiro por uma aquisição orgulhosa e cuidadosa, depois por uma utilização intensa e despreocupada do neto adolescente, a que se seguiu o esquecimento do abandono num palheiro. A ressurreição do restauro veio a seguir, e as primeiras homenagens ao avô inscreveram-se sob a forma de participação nos Lés a Lés de 2008 e 2009, ambas a cobrir de glória uma scooter que é muito mais do que uma simples máquina de aço amarela. É quase um membro da família do Rui.


A acompanhar-nos nesta jornada tínhamos, pela primeira vez, uma outra Heinkel Tourist. A 103 A2 de 1965 do Paulo Simões Coelho, um gestor que é adepto de uma visão ecléctica do ser humano, e cita Robert Heinlein para o ilustrar. Porque o Homem deve ser alguém capaz de planear uma invasão, esquartejar um porco, projectar um edifício, escrever um soneto, analisar contas, imobilizar uma fractura, confortar um moribundo, acatar decisões, impor decisões, cooperar, agir sozinho, analisar um novo problema, cozinhar uma refeição saborosa, morrer com dignidade. “A especialização é para insectos”. O Paulo fez a sua parte. Comprou uma Heinkel bamba e na qual não arriscou sequer tentar andar e, sem nunca ter sido engenheiro ou mecânico, lançou-se à tarefa de a reconstruir com recurso à sua capacidade analítica, teimosia, literatura técnica e habilidade mecânica para pôr em prática a ideia de Heinlein: ser capaz de fazer.


A organização atribuiu à nossa equipa, a Scuderia Sereníssima, o número 1. O Paulo Simões Coelho aparecia na equipa 2, com o Miguel Lázaro na SYM 125, e a equipa número 4 com a Vespa PX200 e a LML 200 entregues ao fogoso Duarte Marques e ao estreante Paulo Castanheira. 





A odisseia da preparação das várias scooters para a aventura é um processo que é degustado durante meses e alimenta um impressionante tráfego de e-mails entre amigos. Neste particular, as alemãs são as mais críticas, porque para além das peças fabricadas através do clube Heinkel, não existem peças de substituição novas, e as usadas são difíceis de arranjar. Porém, nunca é certa a fiabilidade quando se viaja nestas condições, sem poupanças, em máquinas com mais de meio século.


Para além do desafio pessoal, e da satisfação interior do cumprimento da tarefa quase romanesca, há uma dimensão traduzida em números, que ajudam a explicar a aura destas clássicas: a velocidade máxima destes engenhos está perto da fronteira dos três dígitos, e o número de cavalos no motor não chega a dois dígitos. É preciso saber aceitar que vamos subir as escarpas do Douro a fundo e ver o velocímetro a marcar 45kms/h. Apesar disso e por causa disso devemos sorrir dentro do capacete.


Esta abordagem implica ajustamentos. Aproveitar tudo o que os pequenos motores têm para dar, parar o mínimo, planear bem os reabastecimentos, e encurtar as visitas culturais a fogachos, de modo a que algum do tempo perdido na estrada, e com eventuais avarias, possa ser compensado, chegando dentro do tempo concedido pela organização.


Claro que o imprevisto é certo quando se viaja assim. Só não sabemos quando chega. Logo no prólogo, primeiro à beira da rampa do palanque, e depois em Provesende, foi necessário rever a alimentação da Heinkel A2. Sempre com a reportagem da RTP por perto. Mais tarde seria a Heinkel A1 a reclamar por atenção, num troço de terra no Alentejo, em que o filtro de ar entupiu, tanto era o pó. Furos foram dois na Vespa PX200, canibalizando a roda de reserva da LML 200.


Para recuperar destas paragens não programadas, aproveitam-se todos os metros de estrada, incluindo, em recta, os vários cones de ar que diminuem o arrasto e nos permitem ganhar, três, quatro, cinco quilómetros hora. Velocidade balística. Num desses cones, a descer, a LML marcava cento e dez quilómetros hora no painel. Quase rezei. Ao chegar ao final da descida, o escape partiu, transformando o seu ruído inicial numa réplica de uma XT600 ilegal.


Vaticinou-se o fim da aventura, mas aqui ninguém desiste. A palavra reboque emergiu no meu cérebro, no de outros aflorou-se a hipótese de soldar o escape em Sousel, a alguns quilómetros de distância. As mãos mais experientes e calejadas do Rui Tavares sentenciaram uma reparação no local. Só precisávamos de arame, mas mais grosso do que o disponível no porta-luvas, para aguentar o peso da curva de escape. Atravessando a estrada alentejana encontrámos uma cerca de arame com a espessura suficiente, que nos cedeu, em estado de necessidade, a matéria-prima para completar a reparação.  


Regressar à estrada e acabar a prova é, assim, a vitória da equipa que não desiste. Que se completa e sedimenta na superação das adversidades próprias de máquinas imperfeitas, com carácter e história, também capazes de vencer colinas, descer trilhos, passar ribeiros. À força de perseverança, algum estoicismo e muita diversão. Porque, no fundo, a máquina que levamos também precisa de nós.





Texto publicado na Revista Topos & Clássicos de Agosto de 2015
Fotos de Paulo Ministro

sábado, 12 de setembro de 2015

Moto ou Scooter ?






Há dias almocei com um amigo há largos anos utilizador diário de scooter, que me apareceu no almoço com uma Triumph Bonneville T100 novinha em folha. Perguntei-lhe pela Piaggio X Evo e disse-me que a tinha entregue na retoma à Triumph. Confesso que ainda não tinha olhado com a devida atenção para a T100, e depois de duas voltas à moto concluí que, aparte a configuração do motor, não está assim tão longe da única moto que, hoje, e nas minhas circunstâncias actuais, consideraria comprar para mim: a Moto Guzzi V7. “Porque é que não compras uma ?”, retorquiu. Fiquei a pensar no assunto e voltei mentalmente a uma questão básica: scooter ou moto ?

Classicamente há três grandes critérios de escolha. Nem todos eles com o mesmo peso e importância, uns são decisivos ou eliminatórios, outros não. Em qualquer deles a escolha pode derrapar na escala do totalmente racional e adequado, ao totalmente irracional e desadequado.  




Em primeiro lugar a forma. Nesta categoria podemos incluir o desenho, as proporções, o tamanho.

Em segundo lugar a função. Neste capítulo afere-se o comportamento em geral,  velocidade, travagem, equilíbrio, segurança, ergonomia, altura ao solo, dimensões das rodas. E também aspectos como a manutenção.

Em terceiro lugar o ego. Uma espécie de feel good factor. Um requisito que, consciente ou inconscientemente nos impomos, que pode ser aparente ou evidente, e que avaliamos como necessário para nos sentirmos bem ao adquirir determinado objecto. Quer seja por satisfação interior, quer seja por assumirmos determinada percepção (verdadeira ou não) por parte de terceiros relativamente à nossa escolha.

Na maior parte dos casos, o critério ego é o que decide. Dito de outra forma, o primeiro e o segundo critérios podem estar preenchidos, mas se o ego não quiser, a compra não se fará. Estou convencido que só assim não será se a compra for definida por critérios quase exclusivamente racionais. O que acontece com alguma frequência com motos ou scooters utilitárias. Mas quanto mais irracional for a compra, maior o peso do ego na definição.

No  meu caso específico, nenhuma das minhas scooters é utilitária, de uso diário.

A compra da Bianca foi definida em grande parte por critérios não racionais. E a LML, embora menos, também. Ajuda não lhes dar um uso diário, o que secundariza a razão em função de factores mais lúdicos, ou do domínio do capricho, ou de ordem sentimental. Porém, em rigor este argumento que serve para a escolha da scooter era perfeitamente reversível: podia comprar uma moto como a Guzzi V7. Não me sairia muito mais caro. Teria mais performance, embora sem excessos, é de uma beleza desconcertante, um V2 transversal, uma moto mais competente para longas tiradas como gosto, com outra polivalência.





Alguns dirão que a V7 até conta com uma imagem mais afirmativa. Masculina. E que uma scooter é e sempre será uma moto fraquinha. Leve, lenta, confinada a percursos curtos, para ir ao café ou para o trabalho. Incapaz de entusiasmar. Não é uma moto a sério.

Discordo.

Adoro motos. Mas, para mim, a scooter é um bicho que representa um equilíbrio. Pode ser irracional, metafísico até: a síntese entre uma bicicleta, um pássaro e uma moto.