domingo, 28 de julho de 2019

Lés a Lés "a la Carte" (III)




(Parte 2 aqui)







Depois de uma noite bem dormida em Cabeço de Vide, tínhamos dois dias pela frente até terminarmos a viagem.
Eu sabia que o último deles era o que me criava maior expectativa, pois fui eu a insistir naquela etapa do Lés a Lés tão diferente do habitual, e que me marcou o espírito por tão boas razões: os longos troços de terra a rolar na imensidão perdida do nosso Alentejo. Também me marcou levemente o físico, porque foi a única vez que caí em nove anos de Lés a Lés, felizmente devagar, na terra, ainda na Helix.
Mas esse seria o último dia.








Até lá tínhamos que voltar a Arronches para retomar o troço original da edição de 2017. No caminho para Arronches estranhei o nível do depósito um pouco mais baixo do que o habitual, e um cheiro intenso a gasolina, mas o rendimento pareceu-me quase normal. Assim que parámos à sombra junto à igreja local o odor intensificou-se ainda mais, fez-me lembrar o jet fuel da CN. Algum de nós avisou pelo rádio que a X8 estava a verter gasolina entre as rodas. Paragem à sombra logo pela manhã. Aberto o compartimento de carga, havia gasolina por todo o lado, incluindo em alguma da bagagem.
Tubo de alimentação roto. 












Com um canivete e algum engenho e arte, o departamento técnico da expedição conseguiu -  com um brilho nos olhos por pegar em ferramentas - corrigir a deficiência em tempo record de modo a podermos prosseguir viagem. É um dos problemas de scooters a caminho de velhas que provavelmente não tiveram uma vida fácil, como a minha X8. As tubagens começam a apodrecer. Uma linha inteiramente nova de gasolina seria mais tarde instalada já em Lisboa na Oldscooter.





Com a primeira intervenção do dia ainda a digerir o pequeno-almoço, temi que o dia se tornasse demasiado longo. E foi mesmo. Com excepção de uma curiosa passagem em Ouguela, uma quase desértica fortificação com pouco mais de uma dúzia de habitantes nas ruas, o resto do dia foi decepcionante em termos de descoberta e aventura. A culpa não era só da orografia e das distâncias longas. Era sobretudo do calor.

Rumámos a Campo Maior, onde fizemos um bom pequeno troço entre vinhas em terra, e parámos em Elvas para um almoço rápido sob um sol impiedoso, com mais um jogo de futebol nos ecrãs, e uma exposição de veículos militares na praça central alentejana. O calor era tanto que só me apetecia dormir a sesta num quarto com ar condicionado e retomar viagem à noite. Não sei como há gente que só gosta de andar de moto no verão!
O oásis alentejano no mapa à nossa frente parecia ser a minha adorada Monsaraz, mas aí o calor era para lá de violento. Ao atravessarmos o Alqueva, a caminho de Espanha, apanhámos aquelas rectas sobre a barragem que parecem ser um convite à velocidade de ponta. O Miguel teve um mini-agarranço o que nos fez parar numa das poucas sombras junto a uma placa com o nosso próximo destino: nada mais nada menos do que a mais quente localidade do país: Amareleja. 












Depois do arrefecimento possível do motor, lá prosseguimos para o triângulo mais desnecessário e inútil de toda a viagem: a ida à Amareleja, numa estrada desinteressante e de péssimo piso, sem nenhuma razão aparente a não ser seguirmos o road book. Poucas vezes me arrependi de seguir o trajecto de um Lés a Lés como neste dia.
Ainda tínhamos as Minas de S. Domingos e Mértola para ver, mas nenhuma das duas era novidade para mim e as minhas miragens no horizonte alentejano já só desenhavam um bom duche e uma cama lavada. Os castelos e as centenas de anos de história que noutros dias me entusiasmam, estavam hoje do lado do sacrifício que, às vezes, e em viagens longas, também é andar de moto.






Em Alcoutim era altura de virar para o interior e fazer a ligação ao local de dormida, em plena N2. As poucas dezenas de quilómetros de leste para oeste pareciam centenas de quilómetros. Só quando começámos novamente a descer tivemos direito a um pequeno brinde. Percorrer um troço da N2 num dos dois locais onde ela é verdadeiramente interessante. Eu sou daqueles que acho que oitenta por cento da actual N2 não tem interesse nenhum, mas admito que estou em franca minoria nesta avaliação. Seja como for, este troço é bom e acabei por raspar um pouco mais o pobre (e já soldado) descanso da X8, em sinal de protesto pelo excesso de rectas e mau piso que o Ernesto reservou aos participantes do Lés de 2017. Desta vez, não antecipámos evitar esta ligação este-oeste tão desesperante não só no mapa mas, acima de tudo, na estrada.

A chegada ao local da dormida, já sem luz natural, foi um bálsamo para a motivação colectiva: banho, quarto com ar condicionado, um restaurante com petiscos, e uma boa noite de sono.

Parte 4
A ideia era começar o último dia apanhando o road book na localidade de Cachopo, página 10 do Lés a Lés Tavira-Covilhã-Boticas. O contraste com o dia anterior era total: estradas interessantes e mente fresca de descanso.
O que nos oferece este trajecto? A vida serrana profunda das gentes do interior norte do Algarve, aldeias isoladas, estradas retorcidas e desertas, desafios de navegação, muita terra e algumas passagens a vau, que imaginávamos relativamente secas.








Pequenas aldeias como Mealha, João Marques ou Ameixial são suficientemente pequenas para só aparecerem em dois lugares: nos mapas do turismo interior algarvio (caso existam), e nos road books do Lés a Lés.

















O festim durou algumas horas, até nos entusiasmarmos tanto com a paisagem, as estradas poeirentas e ondulantes, os desafios do percurso nas nossas pequenas grandes máquinas, que  fomos transpondo uma e outra passagem a vau, com mais água do que a seca faria supor. 


































Até que chegámos à Ribeira de Odiárce, na zona da Vidigueira.




Uma primeira inspecção visual não permitia perceber não só a profundidade da ribeira, como ainda menos sabíamos o que o fundo nos reservava. Pedras ? Cimento ? É que não é incomum por aqui encontrarmos ribeiras com cimento por baixo, na zona de travessia, simplesmente porque aqui não há pontes (!)
O que fazer então ?




Explorar o terreno a pé.
Em várias zonas a água turva subia a mais do que a altura do meu joelho.
Antes que descobrisse a zona menos alta, e quando equacionávamos voltar para trás, o Rui, na única scooter clássica do grupo com um restauro irrepreensível, decide avançar ligando o “cacilheiro T5” sem consultar nenhum de nós! Enquanto as rodas desapareciam qual náufrago por entre as ondas de água castanha, o motor ia abafando até se calar. Um empurrão decidido à T5 ajudou a dispersar a atenção por alguns segundos, mas… o que fazer a seguir ? Iria pegar ? O Rui pareceu-me o menos preocupado da expedição.
O Miguel estava desconfiado e atravessou desligado.





O Paulo tentou atravessar a rolar, assim como eu na X8 jet ski. Qualquer de nós também ficou a meio da viagem. Demasiada água para vencer. 





Ao avançar em modo facto consumado, o Rui “obrigou” a comitiva à travessia, parvoíce que todos lhe agradecemos aliviados, em especial depois de todas as scooters, sem excepção nem explicação, pegarem alguns minutos depois.
É este tipo de misteriosa sintonia involuntária, em quatro cabeças tão diferentes entre si, que ano após ano nos leva a desenhar novas e deliciosas aventuras.  
Há muitas tribos no motociclismo. Grupos, clubes, amigos. Camaradagem. O que é raro é encontrar quatro parceiros tão diferentes entre si que se revejam nestes projectos comuns: não interessa a dimensão da empreitada. Seja a procura de uma peça, encontrar uma Lambretta para um de nós, debater as angústias de um restauro, discutir a cor do parafuso certo. Ou desenhar o mapa em papel que cada um de nós antecipa que os outros três gostavam de percorrer connosco.












    Fotos nº 16 e 30: Paulo Simões Coelho