Quero acreditar que esta LML tem o poder de me fazer andar na ponta dos meus dedos. Leve. Outra vez. Por agora é assim que me sinto na Azeitona. Com todas as suas imperfeições, insuficiências, fraquezas, limitações. Tão evidentes como cicatrizes que todos vêem.
Ir à Serra com ela, na companhia do Miguel e do regressado Júlio, é como carimbar passagem para um encontro que faz todo o sentido.
Uma scooter no seu elemento mais puro, tal como eu a vejo. Paradoxalmente não na cidade, ambiente para o qual foi idealizada e produzida. Mas aqui, junto ao ribeiro, a esta água cristalina, à pedra rude, ao caminho agreste de terra, àquela azinheira que dá vontade de abraçar no meio do silêncio deste lugar mágico.
Ao lado deste vale, em cima da escarpa, a Azeitona cumpre a sua missão. Trazer-me aqui sem alaridos nem espalhafato. Sem protagonismo. Apaga-se. Cala-se o motor suave para se ouvir o som do silêncio. E dos ruídos naturais, a água livre no curso do ribeiro, o vento.
O Júlio sobe a parede que serve de costas à Lagoa. É um anfiteatro íngreme, que daqui parece enorme. Que abriga e proporciona uma vista do vale que é a recompensa justa para quem teve a curiosidade de aqui vir dar.
São os melhores cinco minutos da viagem. Estou fora da scooter, sentado algures no meio do anfiteatro, mergulhado na emoção de ver um cenário de um pequeno paraíso (existem grandes?), quase indomado pelo homem. O sol brilha e aquece o corpo e o espírito a esta altitude.
É um privilégio estar aqui. Não sendo homem de fé, acredito que há momentos em que não é despropositado agradecermos interiormente o facto de estarmos vivos e com todos os sentidos despertos. Para observar. E, num pequeno papel, para fazer parte deste cenário.
Se abandonarmos esta magia e subirmos mais trezentos ou quatrocentos metros de cota, vamos encontrar a estrada que nos levará à Torre. Olhando para o cume que daqui se vê, anuncia-se a inclemência da chuva e do nevoeiro, o desconforto e a frustração de nada ver para além de vinte metros à frente da minha viseira. Deixo-me ficar o mais que posso, sem pressa, mas teremos mesmo que ir.
A passagem pela Torre quase sem neve e a viagem até Seia para almoçar fez-se nestas condições difíceis, com avarias (ou arrelias) numa Vespa aveirense, a precisar de uma vela de ignição que saiu do estojo do Júlio para ajudar a seguir viagem. Duas palavras de agradecimento e companheirismo Vespista e estamos de volta ao asfalto escorregadio.
No regresso de Seia escolhemos o caminho mais longo. Fatos de chuva e equipamento pesado, câmara fotográfica abrigada da água que não parava de cair.
Depois de alcançarmos o planalto nas Penhas Douradas, iniciamos a descida para Manteigas. Avanço um pouco na caravana e aumento o ritmo com o Duarte. Sinto-me confortável a descer na Azeitona. Quase sempre em quarta, terceira poucas vezes, prende-me muito o andamento. E segundas nem vê-las, quase que pára. Ao contrário, o Duarte espreme a rotação do motor livre da PX 200. Os sinais são bons, o piso vai secando, os pneus deixam-se tocar perto dos extremos. No gancho à direita da Pousada mantenho-me num ritmo alto, mas hesito no apex e o Duarte passa-me por fora na PX 200. À Duarte. Paramos à chegada a Manteigas e comentamos a condução e o prazer que estas pequenas máquinas anacrónicas nos dão.
À noite, no Varandas, a conversa gira à volta de petiscos, de um arroz de zimbro e de um bom vinho regional, com as scooters em repouso no parque da Pousada, iluminado à meia luz.
A Serra é assim. Tem tudo o que preciso, em doses certas. A adrenalina e a calma. A solidão e o convívio. A natureza e essa máquina de aço.
Tudo com alma.
7 comentários:
Mais um post fantastico com palavras inspiradoras e excelentes fotos, que nos transportam para locais que fazem parte do nosso imaginario.
Ao ler ficamos com água na boca e vontade de ter ido. Este ano foi por pouco... a ver se é para o próximo ano. ;-)
Bela crónica. O espirito aqui narrado é também a ida à Serra em que eu me revejo! Foi um previlégio fazer este passeio contigo.
grande abraço
Julio
Excelente relato! Para o ano não posso mesmo faltar!
Castanheira,
Obrigado pelas palavras. Para o ano não há desculpa para não ires, nem que seja de LML !
Abraço,
Vasco
Júlio,
A crónica destaca o que o passeio tem de diferente de outros. Este tem a presença esmagadora da Serra como fundo, mas também o teu regresso a estas lides merecia referência. A descoberta do anfiteatro, por exemplo, foi uma insistência tua por seguirmos aquele trilho.
Belos quilómetros, em boa hora voltaste à Vespa !
Abraço,
Vasco
Nuno Ferreira,
Obrigado pelas simpáticas palavras. Este ano esteve menos gente por comparação com anos anteriores. Espero que esta ida do VCL à Serra se mantenha, não só pela tradição, mas especialmente porque é distinto do resto do calendário.
Vasco
Boa crónica. O último parágrafo é brilhante. É também a minha imagem da serra... e de outros lugares.
Enviar um comentário