“Vocês vão nisso até Albufeira ?” A
expressão de incredulidade dos transmontanos em Sabrosa é mais ou menos
idêntica à que ouvimos em Armamar, em Belmonte ou Flor da Rosa. Usar máquinas
lentas por definição e antigas por opção é um capricho difícil de racionalizar.
Afinal,
o Portugal de Lés a Lés é uma proposta de passeio da Federação Portuguesa de
Motociclismo de pelo menos doze horas de condução diárias em cerca de mil
quilómetros, distribuídos por três dias, que liga o norte ao sul do país, num
concentrado de estradas antigas, paisagens pouco vistas e gentes autênticas que
convidam os mais curiosos ao uso de motos de viagem. Uma larga maioria prefere trails alemãs com três letras e uma
hélice no depósito.
Porém,
esta escolha óbvia e tecnologicamente inatacável esbarra num pequeno detalhe:
antes da descoberta dos IP e auto-estradas, uma viagem pelo Portugal perdido de
antanho, pelas estradas de asfalto onde mal cabe um tractor, pelos empedrados,
pelos caminhos romanos, pelos seixos e ribeiras, pela terra e pelos xistos
soltos, não se fazia com motos com ABS, controlo de tracção, cruise control e malas de alumínio. Portanto, as cerca de 580
equipas que abordaram a prova na
perspectiva da lógica do conforto e modernidade, viram o problema de fora para
dentro. Nós preferimos ver de dentro para fora. Adequar as máquinas ao
simbolismo e matriz da prova: era duro percorrer o país naquele tempo. As motos
avariavam, eram lentas, inseguras, e exigiam mestria e domínio de um alicate e
de um martelo. Havia platinados para afinar. Travões que sobreaqueciam.
Carburadores que entupiam. E repará-los na estrada com as ferramentas do
porta-luvas é uma oportunidade para aprender e conviver na beira da estrada.
Sem reboques nem assistência em viagem. Gera incerteza mas também gargalhadas.
Apela ao improviso, à imaginação para a solução de problemas e ao espírito
solidário. Aproxima as pessoas no que elas podem ter de mais genuíno.
É
por essa razão que de há oito anos a esta parte me vejo sempre nos palanques de
partida do Portugal de Lés-a-Lés. Sempre em scooter, clássica ou réplica de
clássica, mas com todos os defeitos das primeiras. Este ano levava a minha LML
, uma prima da italiana Vespa, mas com controlo de qualidade indiano, e voltava
a ter ao meu lado o Rui Tavares, numa alemã bem diferente, com mais letras. A
Heinkel Tourist 103 A1 comprada nova pelo seu avô em 1960. Uma scooter com uma
rara história de permanência familiar, que passou por tudo: primeiro por uma
aquisição orgulhosa e cuidadosa, depois por uma utilização intensa e
despreocupada do neto adolescente, a que se seguiu o esquecimento do abandono
num palheiro. A ressurreição do restauro veio a seguir, e as primeiras
homenagens ao avô inscreveram-se sob a forma de participação nos Lés a Lés de
2008 e 2009, ambas a cobrir de glória uma scooter que é muito mais do que uma
simples máquina de aço amarela. É quase um membro da família do Rui.
A
acompanhar-nos nesta jornada tínhamos, pela primeira vez, uma outra Heinkel
Tourist. A 103 A2 de 1965 do Paulo Simões Coelho, um gestor que é adepto de uma
visão ecléctica do ser humano, e cita Robert Heinlein para o ilustrar. Porque o
Homem deve ser alguém capaz de planear uma invasão, esquartejar um porco,
projectar um edifício, escrever um soneto, analisar contas, imobilizar uma
fractura, confortar um moribundo, acatar decisões, impor decisões, cooperar,
agir sozinho, analisar um novo problema, cozinhar uma refeição saborosa, morrer
com dignidade. “A especialização é para
insectos”. O Paulo fez a sua parte. Comprou uma Heinkel bamba e na qual não
arriscou sequer tentar andar e, sem nunca ter sido engenheiro ou mecânico,
lançou-se à tarefa de a reconstruir com recurso à sua capacidade analítica,
teimosia, literatura técnica e habilidade mecânica para pôr em prática a ideia
de Heinlein: ser capaz de fazer.
A
organização atribuiu à nossa equipa, a Scuderia Sereníssima, o número 1. O
Paulo Simões Coelho aparecia na equipa 2, com o Miguel Lázaro na SYM 125, e a
equipa número 4 com a Vespa PX200 e a LML 200 entregues ao fogoso Duarte
Marques e ao estreante Paulo Castanheira.
A
odisseia da preparação das várias scooters para a aventura é um processo que é
degustado durante meses e alimenta um impressionante tráfego de e-mails entre amigos. Neste particular,
as alemãs são as mais críticas, porque para além das peças fabricadas através
do clube Heinkel, não existem peças de substituição novas, e as usadas são
difíceis de arranjar. Porém, nunca é certa a fiabilidade quando se viaja nestas
condições, sem poupanças, em máquinas com mais de meio século.
Para
além do desafio pessoal, e da satisfação interior do cumprimento da tarefa
quase romanesca, há uma dimensão traduzida em números, que ajudam a explicar a
aura destas clássicas: a velocidade máxima destes engenhos está perto da
fronteira dos três dígitos, e o número de cavalos no motor não chega a dois
dígitos. É preciso saber aceitar que vamos subir as escarpas do Douro a fundo e
ver o velocímetro a marcar 45kms/h. Apesar disso e por causa disso devemos
sorrir dentro do capacete.
Esta
abordagem implica ajustamentos. Aproveitar tudo o que os pequenos motores têm
para dar, parar o mínimo, planear bem os reabastecimentos, e encurtar as
visitas culturais a fogachos, de modo a que algum do tempo perdido na estrada,
e com eventuais avarias, possa ser compensado, chegando dentro do tempo
concedido pela organização.
Claro
que o imprevisto é certo quando se viaja assim. Só não sabemos quando chega.
Logo no prólogo, primeiro à beira da rampa do palanque, e depois em Provesende,
foi necessário rever a alimentação da Heinkel A2. Sempre com a reportagem da
RTP por perto. Mais tarde seria a Heinkel A1 a reclamar por atenção, num troço
de terra no Alentejo, em que o filtro de ar entupiu, tanto era o pó. Furos
foram dois na Vespa PX200, canibalizando a roda de reserva da LML 200.
Para
recuperar destas paragens não programadas, aproveitam-se todos os metros de
estrada, incluindo, em recta, os vários cones de ar que diminuem o arrasto e
nos permitem ganhar, três, quatro, cinco quilómetros hora. Velocidade
balística. Num desses cones, a descer, a LML marcava cento e dez quilómetros
hora no painel. Quase rezei. Ao chegar ao final da descida, o escape partiu,
transformando o seu ruído inicial numa réplica de uma XT600 ilegal.
Vaticinou-se
o fim da aventura, mas aqui ninguém desiste. A palavra reboque emergiu no meu
cérebro, no de outros aflorou-se a hipótese de soldar o escape em Sousel, a
alguns quilómetros de distância. As mãos mais experientes e calejadas do Rui
Tavares sentenciaram uma reparação no local. Só precisávamos de arame, mas mais
grosso do que o disponível no porta-luvas, para aguentar o peso da curva de
escape. Atravessando a estrada alentejana encontrámos uma cerca de arame com a
espessura suficiente, que nos cedeu, em estado de necessidade, a matéria-prima
para completar a reparação.
Regressar
à estrada e acabar a prova é, assim, a vitória da equipa que não desiste. Que
se completa e sedimenta na superação das adversidades próprias de máquinas
imperfeitas, com carácter e história, também capazes de vencer colinas, descer trilhos,
passar ribeiros. À força de perseverança, algum estoicismo e muita diversão.
Porque, no fundo, a máquina que levamos também precisa de nós.
Texto publicado na Revista Topos & Clássicos de Agosto de 2015
Fotos de Paulo Ministro
2 comentários:
Granda reporter!
Artigo de excelencia. :-)
Saudade... Saudade... LOL
Castanheira,
Obrigado pelo comentário. O artigo do Paulo ainda será publicado aqui, mas numa versão mais longa.
Abraço,
Vasco
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